Meninas e mulheres argentinas têm encontrado cada vez mais dificuldades em ter acesso ao aborto, mesmo em casos em que o procedimento é aprovado pela lei, segundo relatório da ONG HRW (Human Rights Watch) lançado nesta segunda-feira (31).

O artigo 86 do Código Penal do país, vigente desde 1921, permite que tenham acesso ao recurso mulheres que tenham sido vítimas de um estupro ou que estejam correndo risco de vida por conta da gravidez.

Em todos os outros casos, é considerado ilegal e punível com até 15 anos de prisão.

“Constatamos que os modelos previstos pela lei vêm encontrando diversas barreiras para serem aplicados. Em muitos casos há desinformação, ou seja, muitas mulheres sequer sabem que têm direito a abortar”, diz à Folha Tamara Taraciuk, vice-diretora para as Américas da HRW.

“Há problemas também em diversas localidades em que há poucos médicos e poucos hospitais e, ao mesmo tempo, muita estigmatização. Ali, profissionais alegam objeção de consciência e não há outros que os substituam”, completa ela.

Segundo o relatório, muitos centros de saúde tomam decisões arbitrárias, fazendo exigências que não constam da lei, como exigir certo tempo de espera, obtenção de permissão da Justiça ou a apresentação de uma denúncia policial.

Para Taraciuk autoridades locais e médicos “fazem isso apenas para adiar o procedimento e torná-lo mais difícil”.

O documento ainda aponta que a situação ficou mais grave nos últimos meses devido à pandemia do coronavírus. Com as medidas de quarentena, ficou mais complicado detectar uma gravidez infantil, por exemplo. O número de casos de abusos sexuais e violência doméstica também subiu no país e no restante da América Latina.

Na Argentina, são realizados 450 mil abortos por ano, segundo a Anistia Internacional. Os dados mostram que 17,6% das mortes de mulheres grávidas no país ocorrem em decorrência de abortos clandestinos.

Segundo as estatísticas mais recentes do Ministério da Saúde argentino, 39.025 mulheres e meninas deram entrada em hospitais por complicações de saúde relacionadas a abortos clandestinos em 2016 —os dados mais atualizados. Destas, 16% tinham entre 10 e 19 anos.

Em 2018, o Legislativo argentino analisou uma lei que poderia autorizar a interrupção da gravidez apenas pela vontade da mulher até a 14ª semana de gestação.

O projeto chegou a ser aprovado na Câmara dos Deputados, porém foi rejeitado pelo Senado por poucos votos. Durante o processo, houve grande mobilização de mulheres pró e contra, com manifestações de rua e um debate amplo na sociedade.

Com a mudança de governo, no final do ano passado, havia a intenção de voltar a submeter o assunto ao Parlamento.

O atual presidente argentino, Alberto Fernández, já declarou que é favorável à mudança na legislação e durante a campanha eleitoral prometeu que iria trabalhar para que o projeto fosse aprovado, mas o tema acabou adiado pela pela pandemia do coronavírus.

“O que queremos ressaltar é que deixar de ter aprovado a legislação em 2018 e, agora, atrasar o processo para colocá-la de novo em votação tem resultado em mais mortes de mulheres. Instamos as autoridades a dar celeridade a essa discussão, para que mais mortes sejam evitadas”, diz Taraciuk.

O documento da HRW, cujo título é “É hora de pagar uma dívida – O custo humano das barreiras ao aborto legal na Argentina”, coloca o foco nas consequências da rejeição da aprovação da lei em 2018.

“Desde que o Senado argentino rejeitou o projeto de lei, milhares de mulheres e meninas estão sendo forçadas a escolher entre ter de superar obstáculos terríveis para ter acesso a um aborto legal ou a recorrer a abortos clandestinos, muitos dos quais se praticam de modo inseguro e colocam em risco sua família e sua vida”, diz José Miguel Vivanco, diretor para as Américas da ONG.

“A pandemia e o confinamento imposto pelas autoridades exacerbaram as restrições ao acesso a serviços de saúde reprodutiva. Diante deste cenário atual, legalizar o aborto agora é mais urgente do que nunca”, afirma ele.

O relatório foi feito a partir de entrevistas com mulheres que tiveram dificuldades para ter acesso ao procedimento, além de profissionais de saúde, advogados e ativistas em várias províncias.

A ONG pede às autoridades que criem regras “claras e homogêneas” e que o novo projeto de lei não seja atrasado para ser enviado ao Congresso por conta da pandemia do coronavírus.

“O problema das mortes maternas não foi interrompido pela pandemia, ao contrário, enfrenta ainda mais barreiras, torna o acesso mais arriscado, às vezes obriga a deslocamentos que não estão autorizados até outras cidades, entre vários novos obstáculos”, diz Taraciuk.

O relatório recomenda que a Argentina despenalize o aborto “em todas as circunstâncias” e o regulamente “de modo que respeite plenamente a autonomia das mulheres gestantes”.

“Deve também assegurar que estas tenham acesso ao aborto legal conforme a legislação vigente e que os trabalhadores da saúde não possam invocar a objeção de consciência para negar-se a praticar abortos no sistema público se isso gera dificuldade ou demora para se ter acesso a serviços de aborto legal”, diz o documento. (Folha de S.Paulo)

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