A inimiga das gentes mostrou novamente suas garras odiosas e me surrupiou mais um amigo. A cretina achou de acertar desta vez no Agenor Monte Brasil, meu fraterno companheiro de andanças amazônicas, em meio à natureza desta região que ele conhecia e amava como poucos. Era alegre por vocação, competente por dedicação e de uma lealdade que não precisou ser forjada porque era da sua própria essência.

De formação acadêmica era bioquímico. Empregou sua ciência a serviço de seu povo: quando serviu como oficial do Exército, foi às fronteiras mais remotas desta terra, na convivência com índios e caboclos, sem nunca esmorecer e sempre empenhado em devolver à sua gente o que ela lhe havia proporcionado, a ele que, pobre desde as origens, logrou o privilégio do grau universitário.

Nunca vi ou ouvi o Agenor reclamar da vida. E olha que ela não lhe foi entregue na bandeja e pronta para consumo. Muito ao contrário. Soube construí-la passo a passo, com a paciência dos fortes e com a perseverança dos convictos. Certo que não o fez só. Comadre Terezinha, companheira de mais de meia centúria, era o esteio e o reforço em que o guerreiro encontrava o afago consolador, a temperar as duras lides com as leniências do amor e os afagos da convivência amável e amiga. Rejane, Regilane, Regiviane,, Fabíola, Junior e Renier foram as ovelhas com que o casal formou o rebanho, apascentado nos campos do mais fértil amor.

Passou a infância em Parintins e ali, às margens do bravio Rio Amazonas, ou nas águas mansas do Macurani, mergulhou de cabeça no imenso caldeirão de mistérios, alimentado pela imensidão da floresta e pela exuberância da fauna. Era um amazonense da melhor cepa; sabia caçar e pescar, sendo certo que o pirarucu e a tartaruga encontravam nele as mãos de fada para se transformarem nas delícias de que tantas vezes os amigos nos fartamos.

Era assim o Agenor. E agora estou voltando do seu enterro. Que crueldade! Por que os velhos temos que estar sujeitos à intermitência dos humores da morte? Será que já não seria bastante a certeza da sua inevitabilidade? A convicção de que é apenas uma questão de tempo para que sejamos o alvo da vez? Parece que não. Parece ser imprescindível que tenhamos de amargar as dores atrozes da saudade, o infinito dissabor da ausência e a certeza do nunca mais. Parece que sem isso desfalcada estaria a nossa condição de humanos, a marcar a impossível falência da dialética dos contrários, sempre a contrapor o bem e o mal, a alegria e a tristeza, a esperança e o desencanto, o êxtase e o esmorecimento.

Meu compadre Jacinto Botinelly costuma declamar um poema que tem início com uma terrível advertência: “Morte macabra, apoteose da vida”. É algo, guardadas as devidas proporções, semelhante à legenda que Dante colocou no portal onde tem início a viagem sem volta: “Deixai toda a esperança vós que entrais”. E é verdade. Dura e implacável, mas verdade apesar de tudo.

Olho para trás e me ponho a vislumbrar a imagem dos amigos que já se foram. Esvoaçam nesse divagar sinistro as figuras de Jorge Rezende, Edson Ramos, Hermes Brandão, Simas Vieira, Gaia Nina, João Baldino, Paulo Figueiredo, Luís Carlos Brandão, Pedro Vasconcelos, Donizete Ramos, Raimundo Catunda, Barroso Neto, todas envoltas pela “voluptuosidade do nada” e sobre todas pairando o riso galhofo da minha irmã Mimita. E a dor, que é sempre cumulativa, vai se apoderando dos sentidos, entorpecendo a compreensão e lançando como que um desafio: até quando suportarás, oh infeliz?

Lembro-me de que meu primeiro contato com essa senhora ceifadora foi quando eu estava na tenra idade de quinze anos. E foi o mais cruel e o desumano porque foi quando perdi meu pai, o velho professor Valois, aquela pessoa serena e benfazeja, cuja simples presença era um lenitivo. O mais grave de tudo é que, apesar da antipática repetição dos fatos, apesar da persistência com que a foice vai realizando sua colheita, não existe meio de se acostumar. É sempre um impacto, é sempre cruel e doloroso, não servindo o sofrimento nem para criar uma crosta de proteção. Estamos sempre vulneráveis à dor e à tristeza.

Agora foi a vez do Agenor. Choro-te a ausência meu velho e querido companheiro, meu Ageu, como por vezes carinhosamente eu te chamava. Fica certo de que, enquanto bater, o coração deste teu amigo que ainda ficou, estará bombeando um sangue para sempre contaminado da tua alegria de viver. A Sede está de luto e te diz: muito obrigado por teres existido, Agenor Monte Brasil.

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