No Rio Grande do Sul, em abril de 2009, uma senhora procurou atendimento médico-hospitalar após uma tentativa de suicídio. Transcrevo o relato do que ocorreu: “Durante o atendimento, solicitou o medicamento dolantina, uma medicação utilizada em caso de dores muito fortes. A profissional negou-se a dar, considerando não ser necessário e, ao invés disto, prescreveu água benta, aconselhando ajuda religiosa para o tratamento da depressão”.

Isso foi parar nos tribunais porque, “inconformada, a paciente alegou ter sofrido abalo moral, já que seu namorado, ao se dirigir à farmácia para comprar o que havia sido indicado, sofreu deboche do vendedor do estabelecimento”.

Era só o que faltava. Lembrei-me de um samba, salvo engano cantado por Zeca Pagodinho, o qual, partindo das certezas de que “gripe cura com limão” e “jurubeba é bom pr’azia”, conclui, a meu ver com acentuado grau de razão: “do jeito que a coisa vai, o boteco do Arlindo vira drogaria”.

O pedido de indenização formulado pela tresloucada suicida foi rejeitado no judiciário gaúcho. A juíza de primeiro grau “avaliou não ter sido demonstrado que o atendimento prestado e o receituário contendo a indicação de água benta causaram transtornos e sofrimento de natureza psicológica. E acentuou: “Talvez tenha pecado a ré na forma de agir, sendo mal interpretada pela autora, mas tal não se consubstancia em agir ilícito, nem dano indenizável”. Esclareço apenas para os desavisados que, na empolada linguagem do juridiquês, ré, no caso, é a médica de indiscutível religiosidade, enquanto autora é apenas a jovem desencantada da vida.

A coisa não parou por aí. Houve recurso e os desembargadores do Rio Grande tiveram que se pronunciar sobre esse relacionamento entre benzedura e direito. Não se mostraram menos céticos que sua colega da instância inferior. A relatora da apelação, acompanhada unanimemente por seus coleguinhas de toga, ponderou que “mesmo que a indicação de água benta não seja uma prática médica, pode ser vista como um ato de preocupação com o tratamento de doença psiquiátrica”. O arremate foi este: “A simples assertiva de que, quando o namorado da autora, levou a receita para comprar o suposto medicamento na farmácia, houve risos dos atendentes, não pode conferir dano à dignidade ou à imagem da autora”.

Trata-se, se não estou em imperdoável erro, de um caso acadêmico de leseira bilateral, expressão que uso por similaridade com a que se aplica, nos meandros da ciência de Ulpiano, às hipóteses de torpeza. Escrever num receituário médico que alguém, doido ou não, deve se tratar com doses regulares de água benta é, no mínimo, uma excentricidade que deve ter mexido com a ossada de Hipócrates, deixando o sábio grego a se indagar por que não pensou em tamanha maravilha. Perdoemo-lo. A farmacopeia da sua época não poderia conhecer a fórmula.

De outra parte, ir comprar água benta em farmácia é uma idiotice que não pode ser justificada nem pelo consumo de elevadas quantidades de maconha vencida. Melhor e mais sensato seria que o bem-amado da suicida tivesse procurado a igreja de Nossa Senhora de Lourdes, ali no Parque 10. Lá, o reverendo padre Paulo Pinto, que além de pároco é referência entre os estudiosos do Direito, tem o produto em quantidade que se pode dizer inesgotável. E com uma vantagem imperdível: a distribuição é gratuita.

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