Falei da Manaus antiga há duas semanas. O tema, além de ser gratificante, me rendeu, no caso específico, um brinde. É que Rinaldo Buzaglo, violonista da velha guarda e íntimo da noite, houve por bem de me enviar a letra de um samba de enredo, intitulado “Hotel Casina – Apoteose Boêmia”, composto nos idos de 1983 para o desfile da Sem Compromisso. Música do próprio Rinaldo e letra de Aníbal Beça, o samba foi interpretado por Aroldo Melodia e diz assim: “Eu embarquei no tempo, voltando ao passado/Dos ditos e dos feitos que não voltam mais/Cantei, ai cantei (recordar é viver))/Em doce parêmia o Hotel Casina da Manaus boêmia//Paris das selvas, “mon amour, três jolie”/Por vinte mil réis as cocotes diziam:/”Oui, voilà, mon chéri”//Nesta saga aventureira coronel de barranco mandava e desmandava/Quando voltava da selva no Casina se hospedava//Hotel Casina da roleta e do bacará/Sem compromisso de perder ou ganhar//Roda roleta, roda da façanha/Redemoinho da sorte/Hoje quem paga é quem ganha//Saudando o século vinte/O Casina fez seu réveillon/Manaus borbulhava nos brindes/Com champanhe Moet Chandon, cantando assim:/Salve, salve o ano novo/E o século vinte/Que já vem chegando/Oi, salve, salve”.

De fato, e como se vê, uma verdadeira apoteose àquele que foi efetivamente um templo da relaxação na Manaus da “belle époque”, como bem retrata Robertinho Caminha, em seu livro “Quelés”. Já não o alcancei e dele só vi as ruínas, hoje em processo de restauração pela prefeitura, mas para outra finalidade. Os cabarés da minha juventude nada tinham de sofisticados e, portanto, não podem ser comparados ao Casina, onde o luxo e a jogatina imperavam, como acessórios para os exercícios de amor clandestino. Nos cabarés que frequentei (Shangrilá, Lá Hoje, Sarmandaia, Verônica e quejandos) a simplicidade era o toque dominante. Assim já os descrevi em outra oportunidade, falando especificamente do Shangrilá:  é certo que ele e todos os seus similares tinham basicamente a mesma estrutura e a mesma forma de funcionamento, o que, de resto, não poderia ser diferente, já que a destinação e o objetivo eram idênticos. Um enorme barracão coberto de telhas de barro, com uma pista central de dança, toda ela contornada por mesas e cadeiras, e lugares especiais para o bar e para a orquestra. Na parte traseira, isolada e protegida por um leão de chácara, ficava a ala dos quartos, onde se resolviam, no final da noite, os amores mais ou menos profundos, que se criaram e alimentaram pela cerveja e pela música brega, destacando-se, nesse particular, as canções de D. Pedrito, uma das quais romanticamente afirmava que “tus ojos, tus ojos me puenen loco; tus ojos, tus ojos me van a matar”.

A respeito do texto anterior, o doutor Mário Antônio Sussman, advogado dos mais ilustres e sionista convicto, me fez lembrar, através de mensagem que, nos cinemas daquela época, o início da projeção do filme era sempre precedido pela execução de “Tico-tico no fubá”, a composição que imortalizou Zequinha de Abreu e Carmen Miranda. Outro jurista emérito, o doutor Divaldo Martins da Costa, advertiu que, em termos de Manaus antiga, impossível esquecer a figura da Dona Iaiá. Ninguém entrava no cine Avenida sem passar por aquela senhora, esposa do proprietário. Ela, sentada à porta, exibia um painel de maquiagem capaz de fazer inveja a Elizabeth Arden e Helena Rubinstein juntas.

O professor Manoel Bessa Filho, que igualmente se deu à pachorra de ler aquelas mal traçadas linhas, também me honrou com seu comentário, ele que é indiscutivelmente um patrimônio das letras jurídicas do nosso Estado. Disse-me assim: “faltou mencionar os ginasianos descendo a Sete de Setembro e as normalistas descendo a Eduardo Ribeiro”. É verdade. O uniforme cinza e branco dos rapazes do Colégio Estadual do Amazonas parecia ter sempre um encontro marcado com o uniforme azul e branco das moças do Instituto de Educação do Amazonas, elas que vinham “trazendo um sorriso franco no rostinho encantador”. Saudades das normalistas.

Quando li o generoso comentário do professor Bessa, veio-me à lembrança um episódio vivido em outras plagas e que por ele próprio me foi relatado. Estava ele em Curitiba (ou seria Florianópolis?), participando de um congresso jurídico, desses em que tudo se discute e nada se resolve. Formou-se grupo de trabalho para uma filigrana da processualística civil brasileira e o nosso conterrâneo defendeu seu ponto de vista com a proficiência de quem conhece tudo de magistério. Opinião contrária manifestou um outro congressista, sulista dos bons, daqueles para quem aqui nestas plagas só existe índio e onça. Vendo que seus argumentos não se sustentavam, essa figura, com o ego inflado, resolveu apelar e assim se expressou: “Saiba o nobre colega que falo com todo o peso da minha experiência porque nesta vida só não foi duas coisas: padre e juiz”. Réplica do amazonense: “Pois saiba o nobre colega que eu fui as duas coisas”. Delicioso, simplesmente delicioso.

Ficam todas essas lembranças incorporadas às deste velho escriba.

Artigo anteriorAo defender a descriminalização das drogas juiz é chamado de maconheiro e de defensor de bandidos
Próximo artigoSem receber cachê, Bolsonaro vira garoto-propaganda da Honda