Neste domingo, 21, completo setenta e oito anos. É já uma estrada considerável. Se eu tivesse que fazer um balanço da minha vida, diria que estou com saldo positivo. Que eu me lembre, nunca fiz mal a ninguém, voluntária ou involuntariamente. Só isso já seria um avanço, conquanto não esteja além da linha de normalidade. Acontece, porém, que são tantas as anormalidades praticadas nesse campo que a simples permanência nos padrões convencionais faz parecer que se pratica um ato de heroísmo. Claro que não me sinto herói. Até porque não o sou mesmo. Apenas encaro a vida como um cenário onde o autorrespeito e o respeito aos outros são indispensáveis, na medida em que sem eles não é possível a convivência minimamente civilizada.

A infância e a juventude foram passadas na Manaus bucólica de pouco mais de cem mil habitantes. Grupo Escolar Princesa Isabel, Instituto de Educação, Colégio Estadual e Faculdade Direito foram as escolas públicas em que, com excelentes professores, completei minha formação. 

Depois, vieram os rebentos. Criei meus dois filhos e minhas duas filhas transmitindo-lhes sempre a visão da solidariedade. Não me arrependo de tê-lo feito assim. Hoje, os quatro seguem caminhos distintos, mas em cada um deles consigo vislumbrar um coração de dimensões amazônicas e, o que é mais importante, uma firmeza de caráter a toda prova.

Então, chegou a vez dos netos. A primeira leva, de cinco no total, já está adulta. Mas há as três pequeninas que vieram reforçar, em termos implacáveis, a ditadura a que se submetem os avós dignos desse nome. Não consigo me ver negando um pedido de algum neto. E não falo em termos materiais porque aí é uma questão de poder ou não poder. Não; minha visão se estende para aquele pedido que só faz sentido para o avô e que, por isso mesmo, não pode admitir a resposta negativa.

Em política já vi de tudo. Não tinha nem completado vinte e um, quando o país foi assolado pela ditadura militar que, rasgando a constituição, depôs o presidente da República e implantou um reinado de intolerância e perseguição. Pensar diferente dos donos do poder era crime gravíssimo a ser sancionado com as penas da lei de segurança nacional, diploma que refletia bem o ideário do regime. Vinte e um anos se passaram assim, até que a normalidade voltou e tivemos, em 1988, o advento de nova Constituição, dita cidadã, buscando lançar os alicerces de um estado democrático e de direito.

Com as liberdades, vieram os abusos. O primeiro presidente eleito pelo voto direto sofre um processo de impeachment pela prática de crime de responsabilidade, mas, observando rigorosamente os mandamentos legais, seu vice assume e completa o mandato.

Eis que, em 2002, depois de sucessivas derrotas, o operário Luís Ignácio Lula da Silva chega à presidência, eleito pela legenda do Partido dos Trabalhadores. Era a primeira vez que um partido, dito de esquerda, lograva alcançar o poder. Aos trancos e barrancos, Lula completa dois mandatos e elege sua sucessora, a qual, por sua vez, também obteve uma reeleição. Mas, envolvida em trapalhadas mal explicadas, acaba por ser vítima de novo impeachment e, o que é mais grave, deixa um campo fértil para a direita lunática disputar e ganhar a presidência.

Assim é que Bolsonaro, um insignificante capitão da reserva do exército, chega ao Palácio do Planalto, arrotando valentia e desprezando as normas mais elementares de convivência política. Em seu “reinado”, estoura a pandemia e o que era ruim ficou pior. Considerando-se atleta e infenso às ações do vírus, Bolsonaro envergonha o Brasil com uma conduta desastrosa, bastando ver que chegamos ao quarto ministro da Saúde, sem que o país tenha definido uma estratégia efetiva de combate à praga.

Bem por isso, não há muito o que comemorar pela passagem do aniversário. Apenas beijar filhos e netos e esperar que o decurso do tempo que resta seja tão ameno quanto possível.

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