No hino nacional português há uma conclamação formulada nestes termos: “Às armas, às armas/Pela terra e pelo mar/Às armas, às armas/Pela Pátria lutar”. Talvez porque a antiga sede da Coroa ainda exerça alguma influência na ex-colônia, o brado veio de repercutir aqui por estas bandas. Mas parece que as motivações são bem diferentes. Enquanto os lusitanos sugerem pegar em armas para a defesa da própria nacionalidade, por aqui o móvel dessa “corrida armamentista” é a defesa pessoal. Ouvi algo mais ou menos assim: “É preciso dar às pessoas de bem as condições necessárias para que se possam defender”.

Não estou muito bem convencido de que a posse de uma arma de fogo seja condição necessária e/ou suficiente para a finalidade assim proclamada. Cuido que, nesse campo, não pode ter aplicação o preceito básico da medicina homeopática, segundo o qual “similia similibus curantur”, o que, se ainda me é de alguma valia o latim de coroinha, significa que, contra o mal, deve-se usar o mesmo princípio ativo dele (“os semelhantes curam-se pelos semelhantes”, segundo o doutor Google).

Então, vejamos. Imaginemos que um indivíduo facinoroso esteja disposto a praticar maldade contra mim. Subtrair algo do pouco que tenho, invadindo minha casa. Para tão nobre desiderato estará munido dos seus instrumentos de trabalho, entre os quais (acho lícito supor) há de estar pelo menos um revólver. Afinal de contas, se ele tomar a sério sua atividade profissional, não poderá levá-la a cabo sem se valer dos mecanismos que lhe proporciona a tecnologia. Pois muito que bem. Eu, que não tenho intimidade de qualquer espécie com armas de fogo, haverei de colocar um basta à incursão criminosa, valendo-me precisamente de objeto do mesmo tipo daquele com que sou ameaçado. É, no mínimo, surreal, porque os contendores estarão em visível desigualdade de condições, na medida em que as habilidades de um são, em tudo e por tudo, superiores à do outro.

Olhemos por outro ângulo. Parece-me razoável ter como estabelecido que a motivação primeira dessa nova moda é a violência exacerbada que se espraiou pelo Brasil afora. Vale dizer: na maioria das cidades brasileiras, as organizações criminosas ou criminosos avulsos, aqueles que ainda não chegaram à sindicalização, estão agindo com uma desenvoltura invejável, de tal sorte que a insegurança passou a ser um ponto de fixação. Tenha-se presente, ainda, que, qualquer que seja a dimensão desse quadro, o fator midiático tende a exacerbá-la, exibindo um cenário quase próximo de uma guerra civil. Que é preciso interromper o curso dessa tragédia é ponto indiscutível. Mas, como? Armando mais pessoas? Já não são suficientes as que estão armadas, praticando precisamente aquilo que se busca combater? Facilitar a aquisição de armas de fogo não vai ter efeito diametralmente oposto àquele que, teoricamente, se busca?

Não são perguntas retóricas. É mister encará-las com seriedade se o que se pretende efetivamente é criar os alicerces de uma sociedade cada vez menos violenta.

A bem da verdade, impõe-se frisar que a nova onda não tomou ninguém de surpresa. Já na última campanha eleitoral ela estava pensada e delineada, como uma das solenes promessas do candidato eleito. Lembro-me de que, nquela época, escrevi um texto contendo a seguinte blague: “estou literalmente cercado pelos correligionários do capitão Bolsonaro que, animados pelas pesquisas, cuidavam de convencer os presentes de que a plataforma do candidato é única que reúne condições de tirar o país do buraco em que o colocaram as trapalhadas de dona Dilma.

A pedido de um militante, baixo o vidro do carro. Ele: “O senhor já conhece a plataforma completa do nosso candidato?” Disse-lhe que ainda não tinha tido oportunidade de desfrutar de tamanho prazer político e literário, mas que estava aberto, democraticamente, para encarar o assunto. Foi um alento para o jovem que prosseguiu por esta forma: “Nós vamos ampliar os programas sociais que hoje estão em curso, criando a bolsa revólver”. Curioso, quis saber como será esse avanço civilizatório. Ouvi que o governo vai assegurar que todos os cidadãos possam adquirir armas de fogo com oitenta por cento de subsídio oficial. O saldo será pago em até cinquenta meses, sendo que se o adquirente da arma, nesse período, matar pelo menos cinco bandidos, estará liberado de arcar com o remanescente”.

Não veio o subsídio, mas a aquisição e a posse já se podem realizar sem maiores entraves burocráticos. Li, ainda, que a tal “bancada da bala” está desenvolvendo ingentes esforços para introduzir mais uma facilidade. Enquanto atualmente só os maiores de vinte e cinco anos podem pretender adquirir armas de fogo, busca-se reduzir esse limite para vinte e um anos. É a mesma tolice da redução da maioridade penal. Só que ao contrário.

Vou repetir: não votei no atual presidente, mas isso não me leva à sandice de torcer para que seu governo dê com os burros n´água. É preciso, porém, o mínimo de cautela. Daí eu me arvorar a dizer: quer combater a criminalidade? Então cuide já e já de rever os rumos da política educacional de nosso país. Sem isso, vai estar malhando em ferro frio.

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