Em 2020, a American Bible Society, em parceria com o Barna Group, divulgou seu relatório anual conhecido com State of Bible (ou Estado da Bíblia). O material mostra tendências culturais nos Estados Unidos sobre espiritualidade e envolvimento das pessoas com a Bíblia. Entre os norte-americanos ouvidos, 9% disseram que usam diariamente a Bíblia. Ao mesmo tempo, 67,8% dos adultos norte-americanos se disseram curiosos pela Bíblia, apontando um possível interesse em estudar mais o livro sagrado do cristianismo.

Embora os dados sejam referentes à realidade de pessoas que vivem nos Estados Unidos, o fato é que a Bíblia é cada vez mais objeto de curiosidade e até controvérsia, especialmente entre os cristãos. As formas de se ler o livro, interpretá-lo e aplicá-lo à vida tem diferido, inclusive entre líderes religiosos. E, algumas vezes, suscitado debates sobre qual é a maneira equilibrada de entender este livro escrito por mais de 40 autores em um período de aproximadamente 1.500 anos.

A Agência Adventista Sul-Americana de Notícias (ASN) resolveu conversar sobre questões como atualização, contextualização e relativização na leitura e estudo da Bíblia com o doutor Elias Brasil de Souza. Ele é graduado em Teologia, concluiu doutorado na mesma área e dirige, há alguns anos, o Instituto de Pesquisa Bíblica (ou BRI, na sigla em inglês), um colegiado de teólogos de várias partes do mundo, responsável pela produção de materiais e consultoria especializada à Igreja Adventista do Sétimo Dia em nível mundial.

Hoje no meio teológico em geral há estabelecida uma discussão sobre maneiras de se fazer a interpretação bíblica. Alguns advogam uma forma de se ler a Bíblia muito mais a partir da cultura no sentido de compreender alguns textos como não mais necessários para os cristãos hoje em termos normativos ou instrutivos. Qual sua visão sobre isso de maneira geral?

Creio que o problema fundamental com alguns intérpretes da Bíblia é o fato de lerem as Escrituras como uma antologia de aforismos ou provérbios. Ou seja, toma-se a bíblia como uma coleção de fragmentos em vez de abordá-la como um todo—que apesar de sua diversidade—possui uma cosmovisão e mensagem unificada. Por exemplo, A Bíblia começa com o relato da Criação, em seguida registra a queda do ser humano no pecado, e continua com a promessa de salvação que passa pela trajetória de Israel e culmina em Cristo.

O Novo Testamento registra o cumprimento das promessas do Antigo Testamento e finalmente se conclui com a nova criação e a consumação escatológica com o povo de Deus habitando na Cidade Santa com Deus e o Cordeiro. Portanto, há uma linha histórica e temática que percorre a Bíblia, o que a torna um livro coerente e integrado e não mera coleção de livros ou fragmentos desconectados. Ao olharmos para a Bíblia sob este ângulo, vamos perceber que até mesmo aqueles textos que, em um primeiro momento, parecem menos relevantes ou desnecessários tornam-se indispensáveis como parte do todo da Escritura e expressam princípios que permanecem aplicáveis a realidade contemporânea.

Contextualização

O que é exatamente a tão falada contextualização do texto bíblico? É uma espécie de atualização de algumas porções?

A contextualização da mensagem bíblica tem ocorrido desde a composição do texto bíblico e seu uso como Escritura Sagrada. Uma tradução da Bíblia ou uma explicação de uma passagem em um sermão ou ensino é um tipo de contextualização. Quando lemos a Bíblia e aplicamos seus ensinos à nossa vida, já estamos contextualizando. Porém, me parece que atualmente o termo contextualização tem sido usado para designar o processo de ajustar as demandas éticas e morais da Bíblia à cultura contemporânea.

Este tipo de contextualização não é aceitável porque implica na imposição de uma autoridade externa—neste caso, a cultura—sobre a Bíblia. Algumas pessoas argumentam que a Bíblia é um livro antigo, cujas normas não mais se aplicam a sociedade atual. Este tipo de argumento não é novo. Marcião tentou fazer isto no segundo século quando rejeitou o Antigo Testamento e porções do Novo Testamento com o argumento de que tais textos não ser harmonizavam com o Deus revelado em Jesus Cristo.

Na metade do século XX, Rudolf Bultman propôs um programa de desmitologização da Bíblia, pois, segundo ele, os milagres relatados na Escritura não se coadunam com os avanços da ciência. Ou seja, não é possível usar luz elétrica e crer em milagres. Assim, Bultman removeu o elemento sobrenatural dos milagres relatados na Bíblia e os interpretou de maneira existencial. Portanto estas tentativas de ajustar a Bíblia à cultura não são novidade. A novidade está no fato de que, em grande parte, a agenda dos “contexualizadores” da atualidade está alinhada com certos estilos de vida promovidos pela sociedade contemporânea.

Como exemplo, podemos citar o estilo de vida homossexual. Alguns argumentam que pelo fato de, segundo eles, haver somente umas três passagens bíblicas que se referem à homossexualidade, isto seria uma evidência de que a ética sexual não é tão importante como a igreja tem entendido ao longo da história. Se este fosse o caso, argumentam eles, a Bíblia devotaria muito mais material a este assunto. Esta posição, porém, é falaciosa.

O maior problema com este ponto de vista é a presunção de que as normas éticas da Bíblia de definem com base no número de versos que supostamente abordam um determinado assunto. Ao assim fazer, os defensores desta posição tomam a Bíblia como uma compilação de versículos e ignoram os princípios teológicos e éticos comunicados pela Escritura como um todo. No caso em questão, o fato de que Deus desde o começo da história humana estabeleceu o matrimônio, constituído por um homem e uma mulher, tem profundas implicações éticas que não podem ser reduzidas com base no número de versículos que abordam o tema.

Relativização

Há riscos de uma interpretação, vamos dizer assim, relativizada do texto bíblico? O que isso implica em termos práticos na vida cristã?

Com certeza. Quando agendas sociais são impostas sobre a Bíblia, a autoridade da mesma desaparece no relativismo da sociedade e da cultura. A Bíblia nos foi dada por Deus para revelar o plano da salvação e orientar nossa vida enquanto aguardamos a volta de Jesus. E sendo Palavra de Deus, a Bíblia é autoritativa em tudo o que ensina e revela. Assim, nossa missão não é adaptar a Bíblia ao estilo de vida promovido pela sociedade secular, mas fazer com que nosso estilo se ajuste às normas bíblicas.

Neste ponto, cabe fazer uma observação sobre uma questão levantada por algumas pessoas sinceras. A questão seria: como aplicar, adaptar ou contextualizar passagens da Bíblia, particularmente do Antigo Testamento, relacionadas com o sistema de sacrifícios, leis rituais, e as guerras do Senhor, etc.? Neste ponto, devemos notar que há um processo de contextualização e interpretação dentro da própria Bíblia. Este fato tem sido amplamente entendido e aplicado por estudantes da Bíblia ao longo da história. Basta uma leitura atenta do Novo Testamento para entender que o sistema sacrifical hebraico foi superado e cumprido em Cristo, e que as guerras do Israel teocrático do Antigo Testamento não têm mais lugar na comunidade fundada por Jesus.

Portanto, há um processo de atualização e interpretação de certos aspectos do texto bíblico dentro das fronteiras da própria Bíblia. Não precisamos importar critérios externos, seja da cultura, filosofia ou razão humana para determinar a relevância ou aplicação do texto bíblico. Dito isto, contudo, precisamos entender que quando aceitamos a Bíblia como Palavra autoritativa de Deus os choques com a cultura se tornam invitáveis. Há certos princípios e ensinamentos bíblicos que estão em radical oposição aos valores promovidos pela sociedade. Quando isto ocorre, há que escolher a quem servir. Como disse Josué num momento decisivo da história de Israel: “se vos parece mal servir ao Senhor, escolhei, hoje, a quem sirvais: se aos deuses a quem serviram vossos pais que estavam dalém do Eufrates ou aos deuses dos amorreus em cuja terra habitais. Eu e a minha casa serviremos ao Senhor” (Josué 24:15).

Caminhos

Existe alguma forma ideal de se interpretar o texto bíblico, levando em conta que há partes escritas em contextos absolutamente diferentes, em uma sociedade muito diferente da que muitos hoje vivem? O que você sugere?

Em primeiro lugar, precisamos ler mais a Bíblia. Muito se fala de interpretação da Bíblia, de passagem difíceis que precisam ser contextualizadas, etc. Mas será que estamos lendo a Bíblia, como deveríamos, para conhecer as histórias, os salmos, as narrativas, os evangelhos, etc., e assim entendermos passagens especificas à luz do todo? Em segundo lugar, temos de aceitar a autoridade da Bíblia como palavra de Deus.  Sem esta convicção, corremos o risco de tratar a Bíblia como um livro igual a qualquer outro—apreciada como obra literária, mas incapaz de transformar a nossa vida.

Em terceiro lugar, precisamos estudar a Bíblia em atitude de oração. Há um dito segundo o qual a Bíblia é o único livro que podemos ler tendo sempre a companhia do autor. O Espírito que inspirou a Bíblia nos foi prometido por Jesus para nos guiar no entendimento e na aplicação da Palavra de Deus. Em quarto lugar, precisamos estudar com humildade, reconhecendo que nosso entendimento pode, às vezes, estar equivocado.

Precisamos submeter nossas opiniões aos nossos irmãos e irmãs que também se dedicam ao estudo da Palavra. Deus não concede luz somente a um único indivíduo, mas guia a igreja como um todo na compreensão das Escrituras. Além disso, Deus pode usar outros leitores sinceros da Bíblia para nos corrigir e ajudar-nos a entendê-la e aplicá-la melhor. Em quinto lugar, na comunhão com o autor da Bíblia, recebemos o discernimento necessário para aplicá-la em nossa vida.

Finalmente, a Bíblia é a Palavra de Deus transmitida em linguagem humana, por seres humanos, localizados em um determinado segmento de tempo e espaço. Como tal, a Bíblia comunica a mensagem de Deus na roupagem das expressões humanas. Ao estudá-la, precisamos ser sensíveis a estas realidades. Mas sempre com o cuidado de interpretar textos difíceis à luz de outros mais claros, e passagens individuais, no contexto mais amplo do ensinamento de toda a Bíblia. Para finalizar, eu gostaria de mencionar duas passagens bíblicas para nossa reflexão:

Hebreus 4:12— “Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração.”

Isaías 40:8— “seca-se a erva, e cai a sua flor, mas a palavra de nosso Deus permanece eternamente.” Com informações Notícias Adventistas.

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