Dia desses, a Lucinha me chamou a atenção para uma coisa no mínimo curiosa: as canções de ninar ou de roda, consagradas no Brasil, têm (pelo menos grande parte delas) ingredientes que estão longe de parecerem adequados para os objetivos a que se destinam. Com certeza não vai ter o sono tranquilo o curumim que for ninado, ouvindo a repetição de “boi, boi, boi/boi da cara preta/pega esse menino que tem medo de careta”. Ora, se o pequeno já não fica muito feliz com uma simples careta, como vai ter tranquilidade sendo ameaçado pelo ente bovino? Isso sem falar no preconceito, ínsito na alusão à cor da cara do boi, o que de resto, é uma grande tolice porque o Caprichoso, sendo preto, tem muito mais charme e beleza do que o contrário, com toda a sua branquelice e sua estrela petista na testa.

Fico também pensando na situação da garotinha, cuja mãe, toda cheia de ternura e carinho, a embala nos braços, entoando esta ameaça policialesca: “Sapo cururu, da beira do rio/Vem pegar esta menina que não quer dormir”. Já imaginou? O cururu é um bicho monstruosamente feio, capaz, nos ditos d’antanho, de dar nó em pingo d’água. A única explicação que me vem à cabeça é a de que a genitora já tenha explicado à sua cria que, mesmo horrendo, o tal sapo pode se transformar em um príncipe, desde que, como indica a lógica, seja beijado com amor. Se a criança conseguir superar o asco inerente a esse procedimento de mutação, pode ser que consiga sonhar com o batráquio já transformado e devidamente paramentado para as cerimônias da realeza. Em outra versão, é o murucututu que ocupa o lugar do sapo. O que seja um murucututu, não me perguntem porque eu não sei.

Lembro-me de uma composição com que as crianças se divertiam e que, se a memória não me falha, continha o seguinte trecho: “Meu anel de ouro/Que papai me deu/Quem achou, achou/Mas quem perdeu fui eu/Quem achou o meu anel/Faz favor de me entregar/Por causa do meu anel/Eu não quero apanhar”. Nos tempos de hoje isso soa quase como um discurso do Bolsonaro. Se não é mais possível aplicar uma simples palmada num curumim mal-educado, o que dizer da ideia de espanca-lo só pelo fato de ter perdido um anel? De ouro, é verdade, mas o valor da joia não há de ter o condão de permitir que o genitor, por mais avaro que seja, extravase sua insatisfação, moendo de porrada o pobre menino. Que vá reclamar do seguro.

No campo das historinhas, a coisa também não é lá das mais promissoras e edificantes. O lobo mau, por exemplo. Que padrão de vilania e burrice, engolfadas em um mesmo ente. Se seu objetivo era devorar a Chapeuzinho, por que não o fez logo início, quando ela estava sozinha na floresta? Mas, que nada! Tinha que primeiro ir à casa da vovó, traçar a velhota. E fê-lo em grande estilo, comendo-a por inteiro, para depois, num requinte de perversidade, envergar as roupas da anciã e, placidamente, deitar-se na cama, à espera da sobremesa. A menina da touca vermelha dá, então, uma demonstração de miopia ou de debilidade mental, ou, quem sabe, das duas coisas misturadas. Como é que, estando à beira do leito, conseguiu se confundir, imaginando que se encontrava ao lado da vovozinha querida? Ou era muito lesa ou estava necessitando de uma urgente consulta com o doutor Denis, esse excelente oftalmologista amazonense.

Os caçadores que matam o lobo e salvam a menina são um caso especial de impunidade, palavra hoje tão em voga nos arraiais punitivistas. Presunçosos, saíam por aí cantando que usavam a espingarda para matar pacas, tatus e cutias. E com que cara ficam o IBAMA e os ecochatos? E olhem que eu não estava querendo mencionar o exercício ilegal da medicina veterinária, escancarada quando os tais heróis dão pelo menos quatro talhos na barriga do lobo, para de lá extrair a velha inteirinha e ainda usando os óculos que portava quando serviu de banquete para a feroz criatura.

E a Branca de Neve, minha gente? A maneira explícita pela qual ela seduziu os anões, especificamente o Dunga, que era uma criança anã, levaria a gentil princesa a se envolver num rumoroso processo de pedofilia, desses que aparecem no Fantástico e que fazem com que a justiça brasileira não respeite as garantias individuais,  apenas por medo da mídia e da opinião pública. Estaria ela enjaulada, cumprindo prisão preventiva.

A Cinderela tinha toda uma vocação para o estelionato. Depois que a fada-madrinha, coautora na prática do ilícito com o emprego de métodos que a levariam ao tribunal do Santo Ofício, ela aplica o golpe no besta do príncipe, deixando para trás o sapato de cristal, único dos seus ornamentos que não perdeu o encanto depois da meia-noite. Então, viveram felizes para sempre.

Concluo, lembrando que o Pica-Pau é um mau caráter de padrão internacional, enquanto o Pernalonga é capaz de fazer inveja ao mais escolado dos malandros. E o Ali Babá conseguiu vivenciar o ditado popular, segundo o qual “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”. No Brasil de hoje, está difícil saber quem merece ser perdoado. E assim, entre tantas monstruosidades, nossas crianças vão dormindo e se distraindo, ao som da mais surreal orquestra de loucuras.

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