O nosso quarto e último causo pedagógico é este: “O professor que amava ler”. Ou seja, quando o professor João da Silva* foi receber uma homenagem na Câmara Municipal de sua cidade natal por relevantes serviços prestados à educação alguém lhe perguntou: – Professor João, o que o senhor fez para merecer tamanha honraria? O professor João pensou um pouco e respondeu em seguida: – Amo ler. – Só isso? – E você acha que ler é fácil? – Não senhor – Se as pessoas lessem não teríamos esses governantes que temos aí.

O vereador que tinha outorgado a homenagem ao professor João, ouvindo aquela resposta, lhe disse: – Professor João, não esqueça que eu também sou político! – E não é verdade meu amigo? – Não podemos generalizar. – Claro, existe exceções. Mas você não concorda comigo que se o povo fosse esclarecido não votaria em candidatos corruptos, parasitas, saqueadores dos cofres públicos.  – Sim, isso sim! – Se o povo fosse mais sábio, lesse mais, certamente só votaria em candidatos éticos, justos, tementes a Deus. – O senhor tem razão, a maioria dos políticos são sepulcros caiados, hipócritas, que vivem da ignorância do povo. – Eu te agradeço por essa homenagem. Mas você acha que ia me comprar com esse pedaço de papel? Quem já foi exilado não tem medo de nada, meu amigo, nem da morte!

O professor João voltou no fim da manhã para casa. Estava pensativo e aborrecido com uma frase que o vereador lhe disse: “Então fique com os seus livros. Eu não vejo evolução no senhor com tantas leituras. Para que serve tanta leitura se o senhor continua na mesma, na pobreza econômica de sempre!”. Ao abrir a porta de sua casa, o professor João só viu livros e folhas de papel em branco na sua frente. Nunca tinha visto tanto livros em sua biblioteca. Seria sonho? As paredes da biblioteca encolheram-se. Abriu-se um buraco gigante no teto. Os papeis saíram voando, sumindo no ar. Sua vista foi parar num livro de filosofia. “Elogio da loucura” de Erasmo de Roterdã. Abriu o livro aleatoriamente e começou a ler:

“Dizei-me se o homem que odeia a si mesmo é capaz de amar alguém; se alguém que está em desacordo consigo mesmo é capaz de entender-se com alguém; se quem está triste e entediado consigo mesmo pode ser agradável aos outros. Penso que ninguém dirá isto, a não ser que seja mais louco do que a própria Loucura”.

Depois que leu esse parágrafo, ficou pensando na sua condição de professor humanista que era. Viu, como que por telepatia, alguns de seus melhores alunos, pessoas de caráter, honestos cidadãos, mas não conseguiu identificar nenhum deles entre os vereadores, os deputados, os políticos de sua cidade. E recitou para si mesmo a frase de Machado de Assis: “Se os bons não se manifestarem os maus tomam de conta”. Ah, embora não sendo professor de Filosofia, naquele dia, o professor João estava muito filosófico.

Alguns dias mais tarde, o professor João passava na frente da Câmara Municipal quando viu o prefeito e os vereadores reunidos. Estavam discutindo políticas de melhorias para a cidade. Mesmo de longe ele conseguiu observar que não existia entre eles nenhum estudante, trabalhador rural, pescador, vendedor ambulante, mãe de família, nenhum negro, indígena, professor ou professora. Convocando o povo que estava do lado de fora, na praça, o professor João começou a falar:

– Vocês se sentem representados por esses políticos? Eles legislam em causa própria. Infelizmente o povo sempre será enganado por esses parasitas. – O que o senhor está propondo professor? Que entremos lá e quebremos tudo? – A violência não leva a lugar nenhum. Você conhece a terceira bem-aventurança da qual fala Jesus no Sermão da Montanha? – Não. O que diz? – “Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra” (Mt 5:5). Violência só gera mais violência. O que muda as pessoas, e consequentemente a cidade, o mundo, é a educação meus caros munícipes. Só a educação salva o homem da barbárie. Lembrem-se, Machado de Assis já dizia: “Se os bons não se manifestarem os maus tomam de conta”.

Daquele dia em diante, ninguém mais ligou para os políticos da cidade. Na eleição seguinte um ex-aluno do professor João da Silva foi eleito prefeito. Contrariando todas as expectativas, no seu primeiro dia de trabalho, ele fez a reforma política. De 42 vereadores da cidade, ele reduziu para três. Acabou com o cargo de vice-prefeito. Economizou muito dinheiro. Depois de quatro anos de governo, construiu vários hospitais, escolas, praças, muitas casas. Foi reeleito. No segundo mandato construiu uma biblioteca em cada bairro da cidade e entupiu de livros, muitos livros, livros para todos os gostos, principalmente livros de filosofia. As pessoas da cidade começaram a ser mais caridosos, amorosos, felizes. Começaram a prestar mais atenção em si do que no outro, independentemente de sua profissão, se era doméstica, vendedor ambulante, comerciante, policial, professor. Todos eram respeitados, acolhidos, independentemente de sua religião e orientação sexual.

Sempre quando o professor João passava em frente à Prefeitura abria o livro do filósofo holandês Erasmo de Roterdã e lia em voz alta: “São dois os obstáculos principais para o conhecimento das coisas: a modéstia, que ofusca a mente, e o medo, que diante do perigo dissuade de agir. Mas a loucura nos livra deles magnificamente. Poucos mortais compreendem a imensa vantagem de jamais hesitar e tudo ousar”. E como um mantra repetia para si mesmo: – Amo ler e o ser humano, mas detesto aqueles que são hipócritas e quem usa de falsa moral.

*Nomes fictícios, pessoas reais.

Luís Lemos

Filósofo, professor universitário e escritor, autor do livro: “Jesus e Ajuricaba na Terra das Amazonas”.
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