Naquele dia, quando a professora Ana iniciou a aula, não imaginou que falar de política despertaria tanto interesse nos seus alunos e tanto ódio na direção escolar.
— Não fale de política em sala de aula. Os seus alunos são crianças. Elas não entendem nada de política — alertou o diretor.
Na sala de aula, a professora Ana escreveu na lousa: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons.”
Depois de pedir que todos copiassem aquela frase de Martin Luther King no caderno, ela perguntou:
— Alguém pode me dizer do que trata essa frase? Qual é o assunto abordado?
— É sobre pessoas boas e pessoas más, professoras! — disse Jorginho, o aluno mais comunicativo da turma.
— É sobre a ganância humana professora — disse Beatriz, a aluna mais popular da escola.
— É sobre acomodação professora — disse José, o aluno mais tímido da turma.
— É sobre política… É sobre covardia… É sobre Medo…
Quando todos estavam falando simultaneamente, a professora Ana fê-los calar falando mais alto do que todos.
— Estimados alunos, a frase é muito rica de significados. Ela pode ser interpretada de várias maneiras e de diferentes modos. Mas não deu para ver quem foi que disse que é sobre política — nessa hora todos gritaram, novamente, levantado a mão num uníssono “foi eu”, reivindicando a professora.
— Tudo bem, crianças! Todos vocês acertaram, é sobre política — disse a professora Ana acalmando os ânimos.
— Professora? — perguntou Fábio, levantando a mão. — O que é política?
— Política Fábio, é a arte de conquistar e manter o poder.
— Professora — continuou Fábio — e o que é poder?
— É o exercício da autoridade constituída.
— Então professora Ana, quer dizer que depois que um presidente é eleito ele pode fazer qualquer coisa para continuar no poder?
— Não é bem assim, mas na prática é isso que acontece — disse a professora Ana.
— Professora! — gritou Lucrécia — a mamãe estava falando dia desses que o atual presidente é machista. O que é ser machista?
— Machista é a pessoa que valoriza apenas o trabalho do homem em detrimento ao trabalho da mulher.
— Professora? Professora? — insistiu Iza. O papai também disse que o atual presidente é racista. O que é ser racista?
— Racista é a pessoa branca que odeia preto.
— Professora, isso não existe, todo mundo é igual no Brasil — protestou Rodrigo, o único branco da turma.
— Tu é mesmo uma barata descascada — disse Beatriz refutando a fala de Rodrigo.
— Professora Ana, a Beatriz está sendo racista comigo — protestou Rodrigo sobre a fala da Beatriz. — Eu não tenho culpa de ter nascido branco — concluiu Rodrigo.
— Branco não, galego! — protestou, mais uma vez, Beatriz — e todos riram as gargalhadas.
— Rodrigo, não existe racismo de negros contra brancos ou, como gostam de chamar, o tão famigerado racismo reverso. Primeiro, é necessário se ater aos conceitos.
— Como não professora! A Beatriz é uma racista — disse Rodrigo.
— Rodrigo, presta atenção! Racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, deve haver relações de poder. Negros não possuem poder institucional para serem racistas. A população negra sofre um histórico de opressão e violência que a exclui — explicou a professora Ana.
A professora Ana incentivou ainda mais aquele debate, perguntando a cada um o que eles achavam sobre o assunto. Enquanto todos participavam dando suas opiniões, ela pensava consigo mesma:
— “A mudança começa pela educação. Somente través da educação crítica das crianças vamos mudar esse país!”
A professora Ana só foi despertada dos seus pensamentos quando a aluna Maria de Fátima lhe sugeriu:
— Professora! A senhora poderia organizar uma eleição de mentirinha para saber quem foi o melhor presidente do Brasil dos últimos anos?
— Se vocês querem, eu organizo — respondeu a professora Ana.
— E como será? — perguntou Rodrigo.
— Será assim… A professora Ana nem chegou a concluir o seu pensamento e a aluna Maria de Fátima voltou a falar:
— A eleição será assim professora. Vamos escrever uma característica que admiramos ou detestamos e em seguida o nome do presidente num pedaço de papel. Depois, em fila, entregamos o nosso voto para a professora. Pode ser assim, professora Ana?
— Claro, Maria de Fátima, excelente sugestão. Proposta aceita — limitou-se a dizer a professora Ana.
A animação foi geral, os alunos, apesar de crianças, já sabiam escrever palavras simples e votaram rapidinho.
Na contagem dos votos, as palavras “genocida”, “corrupto”, “mentiroso”, “fascista” e “ladrão” foram as que mais se destacaram.
Quando a professora Ana ia divulgar o nome do melhor presidente do Brasil escolhido pela turma, o sino tocou. A professora Ana, então, disse:
— Vão lanchar. Saco vazio não para em pé. Amanhã eu divulgo o resultado…
E as crianças saíram em disparada, como aves do ninho, para o refeitório e, depois, para o recreio. Uma algazarra só.
Enquanto a professora Ana caminhava para a sala dos professores, feliz pela aula ministrada, pelo interesse dos alunos, o diretor comentava com a pedagoga:
— Essa professora é uma verdadeira comunista. Onde já se viu falar de política para as crianças. Precisamos fazer alguma coisa.
— Liga para o secretário de educação e pede a transferência dela — sugeriu a pedagoga.
— Vou fazer isso agora mesmo — concluiu o diretor.
Já na sala dos professores, a professora Ana observava a subserviência dos seus colegas de trabalho escolar e concluiu para si mesma:
— “Martin Luther King estava certíssimo, o que deve nos preocupar não é o grito dos maus, mas sim o silêncio dos bons”.
Luís Lemos é filósofo, professor universitário e escritor, autor, entre outras obras, de Filhos da Quarentena: A esperança de viver novamente, Editora Viseu, 2021. Para comprar os livros do professor Luís Lemos acesse o link https://www.eviseu.com/pt/livros/2508/filhos-da-quarentena/ ou entrando em contato com o próprio autor pelo número (92) 988236521. Para segui-lo, inscreva-se no seu canal no youtuber https://www.youtube.com/channel/UC94twozt0uRyw9o63PUpJHg