O autor de discursos excessivos, revestidos de caráter discriminatório e excludente de direitos, não pode se esconder sob o véu da liberdade de expressão e do humor como forma de evitar responsabilidades.

O entendimento é da 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao condenar autores de animações com mensagens transfóbicas, homofóbicas e machistas ao pagamento de R$ 80 mil a título de danos morais coletivos. A decisão foi proferida em 1º de julho. O valor será revertido em políticas de promoção da igualdade e de combate à discriminação. 

A condenação ocorre depois que a Defensoria Pública de São Paulo ajuizou ação civil pública contra Rodrigo Piologo, Ricardo Piologo, Rogério Gonçalves Ferreira Vilela e Fábrica de Quadrinhos Núcleo de Artes S/C. A instituição questionou o conteúdo de vídeos publicados no Youtube pelo canal “Mundo Canibal”.

Em uma das animações é apresentado um remédio para situações “onde você sabe o que quer fazer, mas não tem coragem de fazer”. Em seguida, são mostradas imagens em que um personagem dá um soco na namorada grávida, causando um aborto; um pai atira no filho depois de descobrir que ele é homossexual; e um filho mata a mãe queimada ao saber que ela é prostituta. 

No outro vídeo, depois que o personagem percebe que uma prostituta por ele contratada é uma mulher trans, remove seu órgão sexual com uma tesoura e alonga seus mamilos com alicate. 

“Situações irreais e fantasiosas”
Para a desembargadora Clara Maria Araújo Xavier, relatora do caso no TJ-SP, as produções não fazem nenhuma reflexão crítica e debate sobre temas sensíveis — tal como alegaram os autores —, contendo apenas violações aos direitos das mulheres, crianças e adolescentes, incitação à violência e menosprezo à população LGBT. 

“Ao analisar o conteúdo dos vídeos, não me parece que os requeridos tenham, de fato, a menor noção da relevantíssima função social do humor — o qual dizem praticar — como forma de inclusão, reflexão e de crítica/denúncia social. Aliás, causa estranheza o argumento desenvolvido pelos apelados no sentido de que as situações retratadas nas animações por eles criadas traduzem situações irreais e fantasiosas. Isso porque não há como se reconhecer eventual ignorância, por parte dos requeridos, acerca da dura realidade de discriminação e de violência diária enfrentada pelos grupos sociais vulneráveis retratados em suas animações”, afirma a decisão. 

Ainda de acordo com a magistrada, é “importante salientar que a ferramenta do ‘riso’ — tão enaltecida pelos requeridos em sua contestação e, obviamente, tão desejada por quem tem o humor como ofício — não tem, por si só, o condão de escusar ou mesmo de minimizar discursos excessivos”.

A ação também foi movida em face do Facebook, Twitter e Google, plataformas usadas para publicar e divulgar os vídeos. A Defensoria solicitou que o material fosse retirado do ar, mas o pedido foi indeferido, pois o colegiado entendeu que se trataria de prática de censura.

“Analisando os conteúdos produzidos pelos requeridos — e por mais que, ao senso crítico desta julgadora, sejam eles absolutamente repulsivos, toscos e grotescos — compartilho do entendimento externado pelo julgador a quo no sentido de que o Estado-juiz não pode, de fato, impedir a sua livre circulação, removendo-os da rede mundial de computadores”, justifica a desembargadora. 

“Mundo real”
A ação civil pública foi ajuizada por Rodrigo Augusto Leal da Silva, do Núcleo de Defesa da Diversidade e da igualdade Racial da Defensoria Pública. Ele argumentou que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, podendo ficar sujeita ao controle judicial para apuração de excessos lesivos a terceiros. 

“Se a ‘graça’ é a violência, então essa mesma violência está sendo exaltada, parabenizada e, portanto, há uma franca apologia a ela. Há um recado claro e inegável nos vídeos de que a violência contra minorias é algo digno de elogiosos votos, tanto que ‘engraçada’. É de crucial relevância destacar que tal humor se faz ao mesmo tempo em que, no mundo real, casos idênticos acontecem e chocam o país — o que, a nosso sentir, conferem maior relevância e gravidade ao teor das publicações”, diz a manifestação da Defensoria. 

A Procuradoria de Justiça também criticou o conteúdo do material. “O ‘humor’ do vídeo decorre da identificação: somente quem compartilha do desejo de realizar tais atos de violência, ou que os entendam no seu íntimo, como naturais, diante das situações narradas, irá achar graça no material’, afirma. 

Em primeira instância, o juiz Guilherme Madeira Dezem, da 44ª Vara Cível de São Paulo, indeferiu o pagamento de indenização. Segundo ele, não é possível proibir uma manifestação artística se ela não configura crime. 

Na sentença, o magistrado fez uma série de críticas negativas ao conteúdo citado, classificando-o como repugnante e dizendo ele representa, quando muito, “uma versão piorada e sem talento daquele famoso desenho ‘South Park'”. Porém, o juiz ressaltou que isso não é motivo suficiente para retirar o material do ar.

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1059191-91.2016.8.26.0100

(Consultor Jurídico)

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