Relata a Wikipédia que, lá pelo fim do primeiro milênio, o imperador chinês Hui de Jin foi informado de que seus súditos não tinham arroz para comer. Sua Majestade, enfatuado e poderoso, indagou: “Por que não comem carne?” Mais de setecentos anos depois, em França, a rainha Maria Antonieta tomou conhecimento da grande carência de pão, que era o alimento básico de camponeses e operários. A soberana, com a mesma fatuidade de seu similar oriental, teria perguntado: “Por que não comem brioches?”

Os historiadores não acreditam que seja verdadeiro o episódio relativo à mulher de Luís XVI, atribuindo-o mais à xenofobia e ao chauvinismo que “começavam a ter preponderância na política nacional” francesa, sabido que a nacionalidade da “austríaca” foi um dos fatores preponderantes para sua impopularidade. De qualquer sorte, tudo desaguou na revolução e as cabeças reais acabaram decepadas.

Jair Bolsonaro, por certo, nunca ouviu falar dessas histórias. Acontece que a boçalidade é intuitiva, além de ser apátrida e atemporal, de tal sorte que o nosso imperador resolveu inscrever definitivamente seu nome no rol dos que desprezam a vida humana. Foi assim que, informado por uma jornalista de que no Brasil o número de mortos pela pandemia havia superado o da China, proclamou: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagre. É a vida. Amanhã vou eu”.

Que estúpido! Que grosseirão de galochas! E daí, presidente, que milhões de seus compatriotas chegaram a acreditar que o senhor fosse gente como eles. Gente que sabe da inevitabilidade da morte, mas que também sabe ser crime incentivar a sua ocorrência. Essa mesma gente que não está podendo nem ao menos velar seus mortos, depositados em valas comuns, enquanto o senhor se preocupa em proteger interesses escusos seus e dos príncipes, seus filhos.

“Lamento”. Quanta hipocrisia! Se lamentasse mesmo não teria sido o primeiro a incentivar o aberto desrespeito aos ensinamentos científicos. Não teria ido para as ruas apregoar que a gripezinha não poderia afetar o seu corpo atlético, enquanto as massas, enlevadas pelo exemplo de cima, se expõem ao contágio do vírus mortal.

“Quer que eu faça o quê?” Ora, o quê! Primeiro, seria de bom alvitre que o senhor aprendesse a desempenhar a função para a qual foi eleito e que tem desempenhado de maneira mesquinha e truculenta. Mas isso talvez fosse, de fato, um milagre, e este, o senhor, mesmo sendo Messias, reconhece que não sabe fazer. É bem certo que isso me parece uma inusitada modéstia de sua parte, pois outra coisa não pode ser, além de milagre, o fato de o senhor conseguir impunemente pregar uma política de desgaste das instituições democráticas e ainda encontrar quem o ouça e aplauda. Se não é milagre, é bruxaria, mas deixo essa discussão mística para as reuniões do seu “gabinete do ódio”, onde se estão urdindo todas as mesquinharias que se espalham pelo país.

“É a vida. Amanhã vou eu”. Não seja patético, presidente. Se vida e morte são contrários que coexistem, nem por isso deixa de ser igualmente dialético pretender sempre que a primeira se sobreponha à segunda. Daí porque nem mesmo o senhor pode querer aparentar esse desprezo pela sua própria partida. Aliás, devo lhe confessar que, por incrível que pareça, não gostaria de ver logo esse momento em que o senhor se vá. Não seria justo. É necessário que o senhor fique por aqui mais tempo e tenha a oportunidade de contemplar o estrago que o senhor provocou no seu país.

Não sei se os atletas estão infensos também ao remorso. Se não estiverem, é possível que, com toda a sua macheza e atletismo, o senhor, em observando o resultado de sua obra nefasta, possa derramar uma lágrima de remorso em memória daqueles a quem o senhor traiu de maneira vil e vergonhosa, fazendo-os acreditar na ilusão da gripezinha e encaminhando-os, sem escalas, para ocupar a mão de obra dos coveiros. Coveiros que, por sinal, ficaram felizes da vida quando o senhor reconheceu não ser um deles. A profissão ainda mantém a dignidade.

É uma pena que nos dias atuais não se ouça falar de outra que não sejam pandemia e Bolsonaro. São farinha do mesmo saco: brutais, estúpidas e desnecessárias. Que passem logo.

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