Empresa de transporte coletivo não tem responsabilidade por atos libidinosos praticados dentro de seus veículos. Nessas hipóteses, o assédio deve ser considerado ato de terceiro alheio à atividade desempenhada, sem conexão com aos riscos a ela ligados e excludente da responsabilidade de pagar indenização por danos morais.

Essa foi a conclusão alcançada, por maioria, pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento encerrado na última quinta-feira (3/12). O colegiado julgou em conjunto dois casos em que os assédios foram cometidos em estação da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), em São Paulo, e em ônibus em uma cidade da Paraíba.

Em ambos os casos, as empresas alegavam que não poderiam ser condenadas a pagar indenização por danos morais decorrentes de atos que não possuem ligação com a natureza do serviço prestado.

Além disso, alegaram que tomaram as providências cabíveis em cada caso. Na CPTM, o assediador foi identificado pela vítima e detido por guardas, que o encaminharam a uma delegacia para registrar a ocorrência. Na Paraíba, afastou o sujeito da passageira, desembarcando-o na cidade mais próxima do ocorrido.

Prevaleceu a maioria formada pelos ministros Raul Araújo, Marco Buzzi, Antonio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas Cueva e Marco Aurélio Bellizze.

Para eles, não há como responsabilizar as transportadoras por eventos que nada têm a ver com o serviço prestado, não podem ser previstos e não dependem de sua atuação para a ocorrência.

A decisão realinha a jurisprudência do STJ no sentido de as empresas de transporte não serem responsabilizadas por eventos que nada têm a ver com o serviço prestado ou que sequer podem ser previstos. É o caso, por exemplo, de passageiros assaltados no veículo ou que sofrem danos por objetos atirados de fora do mesmo.

A 3ª Turma, por maioria, vinha desafiando esse entendimento, em situações em que as ocorrências de abuso passam a ser tão retiradas — como mostra o noticiário nacional — que deixa passa a integrar o risco da atividade de transporte.

Foi assim que votou a ministra Nancy Andrighi, que ficou vencida em companhia dos ministros Luís Felipe Salomão, Paulo de Tarso Sanseverino e Moura Ribeiro.

Imprevisível e inevitável
Os votos vencedores nos dois processos foram feitos pelos ministros Raul Araújo e Marco Buzzi, com base na legislação, jurisprudência e doutrina sobre o tema. O ministro Raul destacou que não há meio de evitar a ocorrência do assédio, pois se consuma em fração de segundos em locais vastos e por vezes aglomerados.

É considerado crime inevitável, quando muito previsível em tese, mas com alto grau de generalização. Só quem sabe que vai praticar é o próprio criminoso. Portanto, condenar as empresas de transporte a indenizar por atos desse jaez seria o mesmo de convertê-las em seguradora universal.

Já o ministro Buzzi destacou que essas ocorrências foram levadas em conta pelo Congresso Nacional ao editar a Lei 13.718/2018, que criminaliza a importunação sexual, mas que não alterou a normatividade civil sobre o tema. Por isso, é possível concluir que em momento algum o Estado pretendeu transferir ao particular o ônus de vigiar e indenizar ato ilícito alheio à possibilidade real de controle.

“Não é possível ao Judiciário imputar uma responsabilidade por fato exclusivo de terceiro às concessionárias se o próprio debate político não previu tal possibilidade”, disse o ministro Buzzi. “É um problema de cunho cultural e social, que nem mesmo punitivismo e o encarceramento em massa tende a resolver, pois somente a mudança de mentalidade e educação pode alterar esse quadro”, acrescentou.

Risco do contrato
Relatora de uma das ações julgadas, Andrighi se posicionou de maneira oposta quando votou, em 9 de setembro. Ela destacou que é da natureza do contrato de transporte a denominada cláusula de incolumidade, pela qual se impõe ao transportador, mesmo que implicitamente, o dever de zelar pela incolumidade do passageiro, levando-o a salvo até o destino.

Para a ministra, é inegável que a vítima do assédio sexual sofre evidente abalo em sua incolumidade físico-psíquica, cujos danos devem ser reparados pela prestadora do serviço de transporte de passageiros. Não raro, a mulher assediada precisa voltar cotidianamente ao local do assédio e enfrentar o próprio assediador nas exatas mesmas condições.

Em seu voto, ela também aponta que a questão da violação da liberdade sexual de mulheres em espaço público é cultural. Mas que as condições dos serviços de transporte — superlotados e de baixa qualidade — tem concorrido para a causa do assédio, tornando-se mais um risco da atividade a qual todos os passageiros, mas especialmente as mulheres, tornam-se vítimas.

“O ciclo histórico que estamos presenciando exige um passo firme e corajoso, muitas vezes contra uma doutrina e uma jurisprudência consolidadas. É papel do julgador, sempre olhar cuidadoso, tratar do abalo psíquico decorrente de experiências traumáticas ocorridas durante o contrato de transporte”, disse. “Não pode um ministro assumir postura resignada e comodista. Deve questionar a jurisprudência”, acrescentou. Com informações de Consultor Jurídico

REsp 1.853.361
REsp 1.833.722

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