Maravilha ordinária do dia: lembrando o prato de sépia com chocolate e vinho branco de mi sogrita (pedi a receita), enquanto escuto o andaluz Camarón de la Isla, ícone punk-rocker do flamenco español, cantar “ay, como el agua-a-a-a-a-aa”….

Esquina de Barcelona, manhã de sol de fazer desmaiar as ratazanas do Raval.

Eu passo em bicicleta e ele me abre passagem, rodopiando num passinho matreiro à la Astaire na guia da calçada. Estamos quase a sós, embora o mundo ao nosso redor seja grande, muy grande, emoldurado de fundo pelo edifício mais assombroso y querido de Barcelona: a Sagrada Família, de Gaudí, esses dias desertada pelos turistas.

Antonio, possivelmente andaluz (penso eu) pelo sotaque com que emenda e come as palavra no finá, trabalha de gari em Barcelona. É só o que sei sobre ele. E que seu uniforme é verde e amarelo. “Guapa, guapa, esa mirada a mí me atrapa”, canta, enquanto espero o sinal verde.

A cidade está vazia, pacificada neste atípico mês de férias de verão, a não ser por nós, locais de cada dia.

Os contágios por Covid na Espanha continuam a crescer. Agora mesmo, existem 1.126 surtos ativos documentados em todo o país, quase o dobro dos 675 de apenas uma semana atrás, o que levou o porta-voz da Saúde, Fernando Simón, a dizer nesta quinta (20) que “as coisas não vão bem”.

“Se deixarmos que a transmissão siga, ainda que sejam casos em sua maioria leves, acabaremos com muitos hospitalizados (…) e muitos falecidos”, alertou, detrás de uma máscara azul de tecido com estampa de tubarão, presente de um familiar de uma vítima de Covid-19.

Em apenas duas semanas, a Espanha passou a encabeçar o ranking de casos acumulados por 100 mil habitantes na Europa — 132, superando de longe Luxemburgo (98,6), Romênia (88,5) e Bélgica (60,8), além de França (45), Reino Unido (19) e Alemanha (16).

Uma das principais preocupações é o aumento de casos entre a população jovem e o comportamento imprevidente de muitos, negligenciando o uso de máscara e se reunindo em festinhas e “botellones” nas ruas sem qualquer medida de segurança sanitária, apesar das multas aplicáveis a indivíduos e negócios.

Para diminuir o índice de contágios nessa faixa da população, destinos famosos por sua badalação e vida noturna, como Ibiza e País Basco, passaram de proibir o ócio noturno a também vetar festas diurnas esta semana (como as típicas “party boats” e happy hours em terraços de hotel, comuns nessa parte do globo no verão).

“Hoje, detectamos entre 70% e 75% dos infectados, enquanto que no auge da pandemia não chegávamos aos 10%”, contemporizou Simón em coletiva de imprensa. Por enquanto, o índice de hospitalizações é de 4%, muito inferior ao pior momento da primeira onda, quando chegamos a 55%.

Mas o relativo otimismo de algumas semanas atrás já desapareceu. No princípio de agosto — ou seja, há apenas 3 semanas –, o próprio Simón havia afirmado que ainda não estaríamos vivendo uma “segunda onda”. Wroooong —

Voltando à esquina das ruas (“carrers”, em catalão) Provença e Sardenya, diante da Sagrada Família: em minha bicicleta, inspirada pela paz do momento, sem 1340751708 turistas se amontoando pra selfies, paro (como muitas vezes faço, sempre descobrindo algo novo) para contemplar a louca e infinita obra de arte gaudiana em forma de catedral católica.

(Esses dias, por sinal, motivada pelo breve momento que vos narro, me meti a ler sobre a história da Sagrada Família. Descobri detalhes bacanas y singelos. Em breve conto neste bloguito, a quem interessar possa.)

Antes de seguir meu caminho, escuto Antonio, o gari xará de Gaudí, comentar com seu companheiro, num relance de thread filosófico de meia-manhã: “Xavi, tudo o que há sob o sol tem seu tempo”. Refletindo sobre essa tremenda frase, quase atropelo uma senhora passeando com um fox terrier. Deu vontade de soltar: e o que nos espera, Antonio? (Folha de S.Paulo)

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