No vilarejo do fazendeiro Liu Qingyou, na província de Hunan, passa uma “estrada de redução da pobreza”. O agricultor mostra o cartão, no qual o Estado detalha como retirou da miséria sua família e outros 100 milhões de chineses.

No documento, figuram as causas de suas dificuldades – “doença” e “escolaridade” – e uma lista que enumera como o Estado os ajudou, que vai dos subsídios para a compra de cereais até o melhor rendimento da produção de laranjas.

Nos anos seguintes, Liu recebeu um novo estímulo: uma nova estrada que atravessa as colinas de Hunan e permite que ele transporte os produtos ao mercado na metade do tempo e facilita o acesso a cidades próximas.

Mas não foi nada fácil.

Liu afirma que suas colheitas não melhoraram apesar dos esforços das autoridades locais para ajudá-lo a diversificar os cultivos.

E ele passa frio em sua casa de madeira no inverno, quando a temperatura se aproxima de zero grau.

Liu e sua família – de cinco pessoas – ainda vivem de maneira modesta. Ele se preocupa com o futuro, apesar de agora serem considerados fora da linha da pobreza.

“Podemos sobreviver”, afirma. “Mas nossa casa é ruim”.

Ele gostaria de obter o que outros receberam do Estado: um reassentamento, ou fundos suficientes para construir uma casa de tijolos.

Ele não sabe a razão de não ter sido qualificado. “Por que não podemos ter o mesmo?”, questiona.

Guerra contra a pobreza

As décadas de guerra contra a miséria na China apresentaram resultados significativos.

“Durante os últimos 40 anos, o crescimento econômico da China permitiu que mais de 800 milhões de chineses saíssem da pobreza extrema. É uma conquista extraordinária”, afirma o diretor do Banco Mundial para a China, Martin Raiser.

Em 2015, Xi Jinping prometeu erradicar a pobreza extrema até 2020, um objetivo para ajudar a alcançar a principal meta do Partido Comunista: construir uma “sociedade moderadamente próspera”.

Xi declarou que o objetivo foi alcançado no ano passado e o chamou de “grande vitória”. 

A realidade não é tão simples, porém, e os analistas advertem que o aumento da renda deixou a linha de pobreza da China obsoleta.

Os critérios para decidir quem recebe ajuda também geram descontentamento.

A família de Liu saiu oficialmente da pobreza quatro anos depois de ter sido designada, resultado de uma mudança de política de Pequim, que deixou de depender do crescimento vertiginoso que retirou quase um bilhão de pessoas da miséria.

As autoridades fixaram uma linha de pobreza baseada em por volta de US$ 2,30 (R$ 12,51 no câmbio de hoje) de renda por dia e ofereceram ajuda aos que não recebiam esta quantia.

Mas a China é agora um país de renda média-alta e o Banco Mundial sugere uma linha que dobre o valor atual.

“A atual linha de pobreza rural, unidimensional, não reflete mais o que significa ser pobre em uma sociedade que evolui rapidamente”, afirma Terry Sicular, da Universidade de Western Ontario.

Entrevistar os agricultores é complicado. Quando a equipe da AFP trabalhava em Hunan apareceram seis carros com funcionários públicos. As autoridades fizeram perguntas à reportagem e insistiram em acompanhar os jornalistas depois de solicitar detalhes, como o histórico de viagens para a prevenção da covid-19.

Um policial apareceu em uma das entrevistas para observar, alegando que eram temas “sensíveis”.

Resultados irregulares

O Partido Comunista baseia sua legitimidade em um crescimento contínuo.

Antes da data-limite de 2020, os dirigentes do partido identificaram as residências pobres, distribuíram recursos e construíram infraestruturas como a estrada Qianqing próxima da casa de Liu.

Mas, por trás da campanha contra a pobreza, há pelo menos US$ 1 trilhão (R$ 5,44 trilhões) em empréstimos durante cinco anos e os custos recaem cada vez mais sobre os governos locais.

Em um primeiro momento em Hunan, a falta de dinheiro atrasou a construção da estrada de 63 quilômetros, que foi concluída somente depois que uma reportagem da televisão nacional aumentou a pressão sobre as autoridades locais.

“Agora o transporte é mais fácil (…) aumentou a renda das pessoas em pelo menos 30%”, afirma Liu.

Apesar de ter recebido subsídios, Liu afirma que os negócios estão fracos.

A decoração de sua casa é espartana: uma mesa pequena, ao lado de um fogão, onde seu filho prepara um almoço com bacon curado, especialidade de Hunan.

A decisão do governo local de diversificar a economia com plantações de chá e novas variedades de laranja afetou os lucros, explica o agricultor.

“Antes da retirada das árvores, nossa família ganhava entre 20.000 e 30.000 iuanes – entre US$ 3.100 e US$ 4.700 (R$ 16.866,79 e R$ 25.572,23) por ano”, conta Liu. Agora, muito menos.

O lado positivo

A região tem, no entanto, muitos sinais de crescimento da riqueza.

A renda per capita das casas afetadas pela pobreza em Hunan subiu de 2.300 iuanes para 12.200 iuanes em cinco anos, de acordo com os dados oficiais.

A estrada de Qianqing é uma demonstração dos avanços.

O agricultor Xiang Xiuli, de 53 anos, afirma que agora os moradores não precisam mais transportar os produtos por terrenos difíceis até as estradas mais próximas para vender.

“O tamanho do nosso negócio de laranjas dobrou. Nossos filhos podem frequentar escolas melhores”, afirma.

Para Mi Jiazhi, que saiu oficialmente da pobreza em 2017, tudo melhorou.”Temos todo tipo de recursos”, conta o homem de 71 anos.

“Agora as coisas estão bem… Posso chegar a entre 30.000 e 40.000 iuanes de renda (por ano)”, relata.

Com o aumento da renda e com a ajuda dos filhos, ele se mudará em breve para uma casa maior. “Estou muito feliz”.

A recaída

Com o aumento da linha da pobreza, muitos habitantes das cidades também se tornarão pobres, advertiu Raiser.

Pequim alerta para o perigo de retrocesso, e os agricultores reconhecem que a pandemia da covid-19 afetou sua renda.

Ou Qingping, funcionário do departamento de luta contra a pobreza, advertiu em dezembro que os recursos de algumas pessoas que ainda dependem da ajuda são “insuficientes” para ganhar mais.

“Quando as políticas de ajuda forem suspensas, é provável que retornem à pobreza”, disse.

Isto sem falar nas consequências das doenças, do desemprego, ou das pandemias.

“A eliminação da pobreza em um momento determinado não elimina a pobreza”, afirma Sicular. (Estadão)

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