Fui rever minhas anotações dos tempos de Faculdade e, no campo específico do direito processual penal, não consegui encontrar nenhuma hipótese em que ocorresse prisão em flagrante mediante mandado. Senão vejamos: a flagrância é um estado que, em ocorrendo, permite a qualquer do povo e obriga as autoridades policiais a prender quem nele se encontre. É como soa o artigo 301, do Código de Processo Penal, que transcrevo: “Art. 301.  Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.” Além disso, o mesmo diploma legal ainda estabelece o seguinte: “Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado.”

Vai daí que eu não consegui entender nada quando li que um deputado federal fora preso em flagrante delito e que a prisão ocorrera por força de mandado expedido e assinado pelo ministro Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Como já exposto: ou bem o tal deputado se achava em estado de flagrância, e o mandado seria supérfluo, ou haveria motivo para a decretação da prisão cautelar, aí sim, a ser cumprida mediante mandado. Do jeito que aconteceram as coisas, tudo se transformou num samba do crioulo doido: o deputado vociferando atrás das grades e o Supremo manifestando rara unanimidade, na corroboração de um ato ilegal, porque inútil.

De qualquer forma, sempre é tempo de aprender alguma coisa e eu, na minha santa ignorância, vi pela primeira vez, em mais de cinquenta anos de advocacia, uma prisão em flagrante mediante mandado e oriundo de nada menos que da Corte Suprema do pais.

Quero deixar bem claro que passo longe da possibilidade de estar defendendo o comportamento do parlamentar que sofreu a prisão. Nem sequer consigo me lembrar do seu nome. O que me intriga é a relativização que o Supremo vem fazendo, de uns tempos a esta data, de alguns princípios estruturais do processo penal, com reflexos inegáveis nos direitos essenciais do cidadão.

Lembro-me de quando foi sancionada e publicada a lei conhecida como “da ficha limpa”, que previa a impossibilidade de disputar cargo eletivo quem tivesse condenação criminal ordenada ou confirmada em segunda instância. Escrevi, então, que o Supremo fatalmente derrubaria a lei, eis que era clara a ofensa ao princípio da presunção de inocência, assim definido na Constituição da República: “Ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Quebrei a cara. O Supremo não só convalidou o texto da lei da ficha limpa, como ainda permitiu a sua aplicação numa impensável amplitude.

Isso tudo é preocupante. Com a função maior de preservar e guardar a Constituição, o Supremo Tribunal Federal não pode e não deve ficar exposto a um processo de desgaste que só aproveita aos eternos inimigos da democracia. Mas para esse desiderato, é imprescindível que a Corte se revista de serenidade e isenção, requisitos, aliás, que hão de estar presentes em qualquer das instâncias de julgamento e, muito mais, na suprema instância.

Os arreganhos de um deputado desimportante não deveriam ter tido o condão de abalar a Suprema Corte. As ofensas e ameaças contidas no pronunciamento do parlamentar, mesmo que não estivessem acobertadas pela imunidade parlamentar, não deveriam ter sido levadas a sério, a ponto de quase provocarem uma crise institucional.

Espera-se que o Supremo siga em marcha batida na sua função garantista, inclusive rechaçando qualquer possibilidade de ser ressuscitada a malfadada Lei de Segurança Nacional, herança maldita da ditadura militar. É o mínimo que se pode pretender, dentro da normalidade democrática.

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