Folha de S.Paulo – Ativistas —alguns deles portando revólveres e fuzis semiautomáticos— convergem nesta segunda-feira (20) na cidade de Richmond, no estado da Virgínia, para protestar contra os planos do governo estadual de restringir a compra e posse de armas. Eles pretendem cercar a sede da administração e pressionar legisladores.

O evento evidencia alguns dos temas centrais do debate político americano, opondo os setores conservadores aos liberais. Está em discussão, por exemplo, o quão longe o governo pode esticar seu braço e em que áreas as autoridades públicas podem interferir na vida da população.

Os organizadores esperam entre 50 mil e 100 mil pessoas. Há dezenas de ônibus fretados, vindos de todo o país. Existe um receio de que, se o evento de fato reunir a multidão esperada, a situação repita o violento desastre de 2017 em Charlottesville, também na Virgínia.

Naquela data, um grupo radical protestou contra a retirada da estátua de um general celebrado pela extrema direita, o confederado Robert E. Lee. Um supremacista branco atropelou intencionalmente uma multidão, deixando um morto e 19 feridos.

Dado o histórico, o governador democrata Ralph Northam decretou estado de emergência, pelo qual fica proibido até a terça-feira (21) o porte de armas nos arredores da sede do governo. Normalmente, é possível transitar ali com armas de fogo.

“Recebemos informação confiável de ameaça de violência em torno da manifestação”, Northam escreveu em uma rede social, citando os grupos armados que planejavam viajar a Richmond na segunda-feira. A retórica, ele afirmou, é similar àquela vista antes da violência em Charlottesville.

Pouco após o alerta de Northam, o FBI anunciou a prisão de três membros de um grupo neonazista.

Supostamente ligados à organização Base, eles planejavam participar dos eventos em Richmond—armados. Esse tipo de organização supremacista branca crê que é necessário criar uma “guerra racial” para poder transformar o país em um “Estado branco”.

Apesar de o protesto de segunda-feira ter sido convocado por mudanças na legislação estadual, o assunto ganhou ares de uma batalha nacional. Grupos pró-armas tratam o direito ao porte em Virgínia como um símbolo de sua ampla causa e temem que uma derrota ali possa repercutir em todo o país.

Virgínia esteve sob controle republicano por mais de duas décadas e, como tal, foi visto como território irrevogavelmente conservador. Isso até as eleições de novembro, quando democratas tomaram a assembleia local —a primeira vez desde 1994.

A derrota em Virgínia desceu particularmente amarga entre os setores mais conservadores. Richmond foi uma das capitais do bando Confederado durante a Guerra Civil (1861-1865). Entre outras coisas, Confederados defendiam a escravidão. Grupos conservadores tratam Richmond como símbolo de um projeto nostálgico, apesar de a cidade ter hoje um perfil bastante mais liberal.

Desde que os democratas tomaram Virgínia, o governo propôs uma série de leis restringindo o acesso a armas. Uma das motivações foi o tiroteio que deixou 12 mortos em Virginia Beach em maio.

Uma medida, por exemplo, permite que policiais confisquem armas se o portador for considerado um risco. Outra impõe um limite de compra de apenas um revólver por mês.

Há, por um lado, um crescente apoio popular às propostas. Por outro, no entanto, há ainda forte resistência.

Centenas de pequenas cidades no estado de Virgínia têm se declarado “santuários da segunda emenda”, referindo-se à emenda constitucional que permite o porte de armas nos Estados Unidos
—esse texto serve de Bíblia aos grupos pró-armas.

Ao menos 125 condados e cidades dizem que vão resistir às tentativas de confiscar suas armas. Um deles é o condado de Dinwiddie, onde mora Olavo de Carvalho, um guru ideológico do governo de Jair Bolsonaro.

“Sua segunda emenda está sob sério ataque na Virgínia”, escreveu Donald Trump em uma rede social na sexta-feira (17). “É isso o que acontece quando você vota em democratas, eles levam suas armas embora.”

Existem, pois, duas Virgínias, assim como existem dois Estados Unidos. Uma é favorável às armas, e a outra, contrária. Uma é conservadora, e a outra, liberal. Uma vota em candidatos republicanos, e a outra, em democratas.

“O protesto de segunda-feira é um impressionante exemplo da divisão entre as áreas rurais e as áreas metropolitanas do estado”, diz Bob Holsworth, um dos analistas políticos mais respeitados da Virgínia. As áreas rurais são aquelas mais propensas a apoiar o porte de armas.

Holsworth diz que as comparações entre o protesto de segunda-feira e o ocorrido em Charlottesville não são infundadas, apesar de os dois episódios terem motivações bastante distintas. “A imensa maioria dos manifestantes terá intenções pacíficas”, diz. “A preocupação, porém, é que esse tipo de movimento às vezes atrai pessoas radicais —as mesmas que foram para Charlottesville.”

Cientes de que essa preocupação circula entre o público, os organizadores do evento publicaram um guia online com recomendações para os participantes. Por exemplo, sugerem que os manifestantes não interajam com o bando rival. “Não estamos aqui para argumentar com o outro lado”, diz o texto.

O guia pede também que os manifestantes mantenham o foco no tema central e escanteiem outras questões que podem ser levantadas pelos oponentes —por exemplo, a presença de estátuas de líderes confederados em Richmond, que incomoda parte da população. “Isso não é sobre bandeiras, estátuas, história etc. É apenas sobre armas.”

O faz-tudo Michael Richards, 54, mora em uma comunidade rural no estado da Geórgia. Dessa maneira, não será afetado pela legislação que o estado da Virgínia debate nestes dias para limitar o acesso a armas de fogo em seu território.

Ainda assim, ele planejava dirigir mais de oito horas até a cidade de Richmond, cruzando fronteiras estaduais, para participar dos protestos desta segunda-feira (20).

Isso porque, para ativistas pró-armas como Richards, o que está acontecendo em Virgínia é um prenúncio do que pode ocorrer em todo o país. “Essas leis draconianas não vão parar na fronteira da Virgínia, caso não haja uma oposição visível”, ele afirma.

Richards diz estar ciente de que as leis devem ser aprovadas na Virgínia, a despeito dos protestos. Mas ele quer, ainda assim, enviar uma mensagem aos governantes dos demais estados: “Se vocês tentarem impor leis como estas, vão ver uma população indignada dizer ‘não’.”

“Vou mostrar abertamente minha AR-15 [um fuzil semiautomático] e estarei com uma pistola na cintura”, ele diz sobre o evento. “Vou levar a bandeira da Geórgia para mostrar para a Virgínia que eles não estão sozinhos.”

A questão, para Richards, é de teor legal. A segunda emenda da Constituição americana, afinal, prevê a possibilidade de que cidadãos se armem —apesar de que, do outro lado, os detratores dizem que o contexto histórico era bastante diverso quando esse texto foi ratificado em 1791.

“Eu nunca servi no Exército, nunca fui policial, não pertenço a uma milícia e não caço”, diz Richards. “Mas tenho o direito de usar qualquer ferramenta à minha disposição para me defender, e as armas de fogo são uma das melhores opções. Talvez as melhores.”

“Nós não estamos protestando porque queremos manter os nossos brinquedos”, ele afirma. “Estamos protestando porque queremos manter as poucas liberdades que ainda nos restam.”

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