Félix Valois

Em abril deste ano, um menino foi assassinado no Rio Grande do Sul. O fato, como acontece com todas as violências injustificadas, gerou comoção e revolta, não só pelas circunstâncias que o cercaram, mas também pela idade da vítima, que tinha apenas onze anos de idade. Sabendo-se que o homicida foi o próprio pai da criança, a coisa, então, toma vulto de tragédia e desperta no imaginário as mais conflitantes reações, sobressaindo-se aquela que diz clamar por “justiça”, sem que se defina com precisão o conceito do termo.

Tudo isso é compreensível. A vida em sociedade gera sempre esses conflitos, cujas análises variam de acordo com pontos de vista pessoais e/ou formação cultural e tendência política. O que não se pode compreender é que o Senado da República, visivelmente espicaçado pelo homicídio, tenha aprovado projeto de lei inteiramente demagógico, caracteristicamente produto do ano eleitoral que vivemos. A memória da criança assassinada merecia homenagem mais séria do que lhe colocarem o nome (“garoto Bernardo”) no que deverá se transformar em lei, dependendo apenas da sanção presidencial.

Demagógico e inútil é o tal projeto. Demagógico porque passa para a opinião pública a falsa impressão de que algo de grandioso foi feito para coibir essa modalidade de violência, quando, na verdade, é mera repetição de princípios velhos e revelhos, a totalidade deles, aliás, já consagrados no Estatuto da Criança e do Adolescente. Inútil porque, sem precisar o alcance do que eventualmente tenha buscado, o projeto é de execução inviável sob qualquer aspecto pelo qual seja encarado.

Vamos lá. Pomposamente, assim está escrito: “A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educa-los ou protegê-los”.

Buscando se explicar de forma antecipada, a boçalidade esclarece que castigo físico consiste na “ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em sofrimento físico ou lesão à criança ou ao adolescente”, enquanto tratamento cruel e degradante seria a “conduta ou forma cruel de tratamento que humilhe”.

Muito que bem. Alguém alguma vez teve dúvida de que está na natureza das coisas tratar as crianças com carinho e respeito? Alguém alguma vez duvidou de que eventual castigo a uma criança ou a um adolescente, por alguma conduta censurável, não se pode transformar em massacre? Cuido que a resposta é óbvia. Também parece evidente que, apesar dessa obviedade, casos existiram em que a ação de pais e responsáveis transbordou dos limites do razoável para desaguar em ato de barbárie, tanto mais reprochável porque decididamente covarde.

Mas tudo isso é questão de bom senso e de adaptação às normas de convivência civilizada. Esses desvios de conduta estão previamente censurados por códigos sociais não escritos, sendo certo também, como já frisado, que, no Brasil, temos leis postas que já reprimem comportamento desse jaez. Para que serve, então, o projeto? Para nada, absolutamente nada, traduzindo-se em mero exercício de retórica para satisfazer os anseios publicitários dos que buscam o voto popular.

Mais importante que essa tolice seria criar mecanismos que permitissem uma verdadeira revolução na vida brasileira, colocando-a no caminho da busca pela igualdade social, pela ausência de discriminação, pela plena realização do homem como verdadeiro sujeito da história. Estabelecida uma igualdade autêntica, o próprio processo de formação cultural se encarregaria de estabelecer as formas de conduta compatíveis com as aspirações da sociedade, sem que se precisasse de elaborar um “catecismo” de regras tolas e piegas.

Tudo isso me lembra um episódio que já relatei neste espaço, mas que sou obrigado a repetir, até porque ele demonstra que antes, muito antes dessa falácia que se vem de aprovar no parlamento, o assunto já tinha suas devidas e necessárias dimensões. Contou-me o professor Lourenço Braga, que ministrou aulas na Universidade Federal do Amazonas e foi reitor de nossa Universidade estadual, que, na disciplina “direito do menor”, explicava à turma que os pais tinham o direito/dever de educar os filhos, recorrendo, se fosse o caso, ao castigo físico. Um aluno ponderou: “Professor, mas há de haver uma limitação para isso, não é mesmo? Por exemplo, se um pai pega o filhinho de dois anos, moi o menino de porrada a ponto de ele entrar em coma, já há exagero?” O mestre se empolgou, vendo que o discípulo captava a essência da coisa, e o incentivou: “É isso mesmo. Você está no caminho certo”. Veio, então, a réplica fatal, com o gênio da raça produzindo a seguinte pérola: “A não ser, não é, professor, que o pai tenha agido em legítima defesa? ”Convenhamos que umas palmadinhas teriam evitado a criação de tamanho energúmeno.

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