O texto abaixo foi publicado originalmente em 1996, no hoje extinto Jornal do Norte. Resolvi reproduzi-lo porque, por incrível que pareça, o assunto nele abordado não sofreu modificações de monta, de tal sorte que o problema do material de ensino usado no Brasil ainda se revela um problema. Eis o texto:

Os jornais noticiaram que o Ministério da Educação resolveu fazer uma espécie de auditoria nos livros didáticos usados pelas escolas brasileiras, principalmente as de primeiro e segundo graus.

Já vem tarde, muito tarde, a providência.

Os livros que ensinam nossas crianças e adolescentes há muito padecem de um cretinismo crônico, do qual só se salvam mesmo as indefectíveis honrosas exceções.

Começa pela visão simplista da quase unanimidade dos autores, os quais, sem qualquer criatividade ou preocupação crítica, se limitam a uma lengalenga repetitiva, que, no campo, das ciências humanas, traduz a visão de um oficialismo bolorento e sem consistência.

Na área específica da história, por exemplo, fica difícil para qualquer jovem compreender por que é que D. Pedro I, tido e havido nos livros como herói nacional, ao proclamar o Independência ou Morte, como símbolo máximo da revolta brasileira contra as cortes de Lisboa, logo depois abandona o trono do nosso glorioso império e vai ser rei precisamente de Portugal. Se é que tais livros ao menos mencionam essa segunda parte da biografia do parceiro do Chalaça.

A abolição da escravatura surge como um gesto magnânimo e humanitário da obscura princesa Isabel, inteiramente desvinculado da realidade social e econômica do país. O pai da nobre figura, aliás e por seu turno, retratado como um velhinho bondoso e bonachão, de repente se transforma em exilado, sem que ninguém explique os motivos do primeiro golpe militar de nossa história republicana, o que, em seqüência, vai deixar perplexo quem quiser compreender as origens e fundamentos da sangrenta ditadura militar que se abateu sobre nós a partir de 1964.

Isto para não falar no período intermediário, de  onde os didáticos historiadores fazem brotar um Getúlio Vargas caracterizado de pai dos pobres, sem mencionar os horrores do Estado Novo e as atrocidades praticadas pela polícia getulista, à frente o infeliz Felinto Muller, e sem referir, nem mesmo de passagem, o episódio da Coluna Prestes, cujo comandante jamais foi colocado, como deveria, no panteão dos heróis.

Dir-me-á um crítico, dotado de um misto de bondade e reacionarismo, que se trata de um caso puro e simples de visão individual do observador da história, buscando concluir que a interpretação desta não se há de fazer de forma esquemática e dentro de padrões ditados por uma única escola de pensamento filosófico-político.

A crítica já seria em si mesma uma tolice, na medida em que não é possível tratar a História como conto de fadas. Mesmo, porém, fosse ela procedente, os livros didáticos não escapariam da necessidade inadiável de rígida e inclemente profilaxia.

Quando meus filhos ainda freqüentavam os cursos básicos, lembro-me de que, num livro que se pretendia de geografia, li que o ponto extremo leste do Brasil era a Ponta Seixas, no Cabo Branco, no litoral de Pernambuco. Àquela altura escrevi que meu amigo paraibano, Dr. José Trindade Martins, me assegurou, sob o penhor de sua honra, que a Paraíba ainda não havia aberto mão de sediar tão importante acidente geográfico, abusiva e estupidamente deslocado pelo autor do papelucho de uso obrigatório nos colégios.

Por essas e outras é que estão passando a exigir de quem conclui curso superior um provão de capacidade para o exercício da respectiva profissão. Talvez com isso se evite que quem se forjou na leitura dessas preciosidades didáticas se transforme no advogado que confunde habeas corpus com Corpus Christi, ou no médico que, na ausência de vitamina B-12, receita duas doses de B-6.

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