A decisão da Segunda Turma do STF de considerar o ex-juiz Sérgio Moro parcial no processo da Lava-Jato, quanto às condenações relacionadas ao ex-presidente Lula, merece grandes e profundas reflexões por parte de todos nós brasileiros. O impacto foi brutal em vários compartimentos desta Terra tupiniquim.

A consequência primeira do fatídico decisório – e também a mais importante – foi a sensação de termos voltado à estaca zero. Um sentimento de completa impotência diante de tantos desmandos e atrocidades que desfilaram diante de nós ao longo dos últimos 5 anos. Parecia, finalmente, que a certeza da impunidade tinha chegado ao fim neste País ou, ao menos, que o arsenal legal reservado aos contumazes transgressores da lei e da ordem  – os chamados “peixes grandes” – seria a eles apresentado. De quebra, restaria cumprido um dos mais significativos direitos fundamentais: “Todos são iguais perante a lei”. Sem exceções. Sem meias palavras.

Ledo engano. Continuamos na mesma.

E o que é pior: a reviravolta se deu em “socorro” ao princípio do “devido processo legal” que, ao menos para a maioria da Segunda Turma, foi mais do que suficiente para sepultar um arsenal de esforços e dinheiro público no combate ao crime organizado.

O voto proferido pelo recém-empossado Ministro Nunes Marques foi brilhante. Parafraseando o próprio Ministro Gilmar Mendes em sua fala, Marques afirmou que  “não se combate crime legitimando outro crime”. Ele se referia ao modus operandi que o ex-presidente Lula recorreu para colher as supostas “provas” que atestavam a parcialidade de Moro. De acordo com o art. 10 da Lei n. 9.296/1996, que regulamentou o inciso XII, do art. 5º, da Constituição Federal, “constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, promover escuta ambiental ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”.

“Se o hackeamento fosse tolerado como meio para obtenção de provas, ainda para defender-se, ninguém mais estaria seguro de sua intimidade, de seus bens e de sua liberdade, tudo seria permitido. São arquivos obtidos por hackers, mediante a violação dos sigilos ilícitos de dezenas de pessoas. Tenho que são absolutamente inaceitáveis tais provas. Entender-se de forma diversas, que resultados de tais crimes seriam utilizáveis, seria uma forma transversa de legalizar a atividade hacker no Brasil”, afirmou Nunes Marques. Acrescentou: “a sociedade viveria processo de desassossego semelhante às piores ditaduras” se isso acontecesse. “Não é isso que deve prevalecer nas sociedades democráticas. A forma importa na democracia tanto quanto o conteúdo.”

Outro aspecto que o Ministro Marques chamou a atenção foi em relação ao debate ter sido num Habeas Corpus cuja natureza, segundo ele, não oportuniza o contraditório e a ampla defesa o que impossibilitou a oitiva do ex-juiz Sérgio Moro para apresentar suas contrarrazões. A discussão do tema em sede de HC vai contra inúmeros julgados do próprio STF, arrematou. Portanto, não houve o necessário contraditório. É como se alguém amarrasse uma vítima e a esbofeteasse até a morte, sem qualquer chance de defesa para o vulnerável.

E aí? Onde fica mesmo o devido processo legal?  É seletivo? Vale apenas para alguns, para outros não? Cadê o respeito à forma processual adequada? Pior: à guisa de cumprir um princípio processual descumprem-se outros dois, igualmente caros às normas processualísticas: o Contraditório e a Ampla Defesa.

Não bastasse tais alegações, há outras questões que precisavam ter sido enfrentadas para melhor encaminhamento dos entendimentos.

Conquanto haja objeção explícita insculpida no corpo dos direitos fundamentais de nossa Carta Magna repelindo o uso de provas ilícitas no processo, consolidou-se no Brasil uma linha doutrinária e jurisprudencial no sentido de admiti-las para fins de defesa dos réus nos processos em determinadas situações. Foi nessa linha que foi construída a defesa do ex-presidente. 

No caso específico envolvendo o ex-juiz Sérgio Moro, a defesa de Lula alegou a parcialidade no seu julgamento, sustentada em troca de mensagens entre o magistrado e alguns procuradores envolvidos na operação Lava-Jato. Aqui, nascem alguns senões: as provas produzidas no processo, responsáveis por incriminar Lula da Silva, foram fraudadas? E, se foram, a autoria da prova fraudulenta pode ser atribuída, de maneira INQUESTIONÁVEL, ao ex-magistrado? Ou, dito de outra forma, ainda que tenham sido consideradas fraudadas as provas, é possível vincular a conduta de Moro à fraude perpetrada?

Se as respostas a tais questionamentos foram, respectivamente, NÃO, NÃO, NÃO então, a meu ver, há margem suficiente para “se esticar” o debate e questionar a solidez da decisão adotada. Se, nada obstante as trocas de mensagens, as provas permanecem robustas, então por que descarta-las??? Isso me cheira a puro preciosismo processual.  

Se houve crime, conforme alega a defesa de Lula, caberá a ele a responsabilidade de provar o fato criminoso (parcialidade do ex-juiz) mediante a oferta de elementos capazes de sustenta-lo, a saber, (i) nexo de causalidade, (ii) autoria, (iii) materialidade e (iv) resultado. Alguém poderia objetar: mas tais responsabilidades são mais costumeiramente aplicáveis aos acusadores nas ações penais e não aos réus. Lembro, todavia, que no novo campo de debate – inaugurado por Lula da Silva – é ele, o ex-presidente, o autor; e Moro o acusado. Os polos se invertem. O Direito não é algo fechado, pronto e acabado. Muito pelo contrário. Se é Ciência, ele deve, como todo conhecimento científico, buscar a verdade OBJETIVA, não subjetiva. As condições de autor e réu não devem se prender ao início da ação judicial, como se fosse algo estático e inalterável. Dependendo do que for debatido no processo, os papéis podem perfeitamente se alternar ao longo da discussão processual. Quem era autor assume o papel de réu; e quem era réu reveste-se da condição de autor. As responsabilidades de quem assume o novo papel processual vão juntas ou, ao menos, deveriam ir.  

A meu ver, um outro argumento que reforça esta essa linha de entendimento molda-se às consequências do decisório.

Conforme mencionado na inicial desses comentários, a decisão da Segunda Turma deletou 5 anos de investigações. Jogou-se fora tempo e dinheiro públicos. Isso tudo sem contar os esforços dos inúmeros magistrados que se debruçaram sobre os autos envolvendo o ex-presidente nas três instâncias da justiça federal com passagens, inclusive, pelo crivo do próprio STF. Portanto, a decisão que viesse a ser adotada – dada a magnitude de suas consequências – deveria ter pavimentado todo o terreno dos debates, a fim de que todos os pontos controversos fossem suficientemente esclarecidos, à luz do melhor Direito e da boa Doutrina.

Acredito que o judiciário penal nacional deva avançar na discussão de embates envolvendo provas materiais e normas processuais. Indubitavelmente, ambas são importantíssimas na produção de decisórios, mas as primeiras não podem sucumbir, cegamente, às últimas; sob pena de o Direito se desgarrar da Justiça.

Ainda reluto em aceitar a rejeição sumária de provas contundentes nos processos que reúnem, de uma só vez, todas as características do delito cometido (autoria, materialidade, nexo de causalidade) simplesmente pelo fato de não terem sido supervisionadas pela autoridade judicial (magistrado). Isso é limitar o dinamismo da Ciência jurídica e esvaziar o debate na busca da verdade real e na distribuição da justiça. É o caso de vídeos em que aparece um sujeito colocando dinheiro na mala, na meia, na cueca e em outros redutos do corpo humano, mas que foram descartados do processo, simplesmente por não terem recebido a prévia autorização judicial. Também as interceptações telefônicas não autorizadas contam-se entre eles.

Por fim, nenhuma linha de discussão foi construída a respeito da INTEGRIDADE das mensagens trocadas entre Moro e os procuradores da Lava-Jato. O Ministro Nunes Marques chamou a atenção para essa lacuna em seu Voto. Nenhum conteúdo das mensagens veio à discussão na Segunda Turma o que exigiria a concorrência do ex-juiz Sérgio Moro para apresentar suas contrarrazões.

Seria preciso fazer um paralelo entre o conteúdo das mensagens oferecidas por Lula e o conteúdo das mensagens constantes nos celulares de Moro, Dallagnol e demais procuradores. Avaliar se havia absoluta correspondência entre ambos. Qualquer desalinhamento entre eles já militaria em desfavor da acusação protagonizada por Lula. Porém, nada foi discutido a esse respeito o que, como disse, semeia dúvida quanto à solidez do decisório.

Finalizo esses comentários compartilhando o trecho de um comentário que me foi repassado por um amigo meu que é professor na Universidade de Cambridge:

“Pobre Brasil!! Seguidos recordes diários de mortes por Covid e a paralisação da atividade econômica não bastavam. Para completar o caos, faltava uma decisão jurídica que não apenas jogasse no lixo os esforços de combate à corrupção dos últimos anos, mas ainda sinalizassem para corruptos que eles não correm riscos. Apenas os que os enfrentam. O passo seguinte será punir quem ousou rebatê-los. Políticos corruptos serão elevados a mártires injustiçados. Quem ousará combater corruptos depois disso? Roberto Campos tinha razão: “uma tragédia como a brasileira não é obra do acaso, mas sim o esforço determinado de décadas”.

E eu pensava que este País estava começando a se curar de suas feridas…Engano meu!!! Nossas chagas parecem INCURÁVEIS!!!

Alipio Reis Firmo Filho

Conselheiro Substituto – TCE/AM e Doutorando em Gestão

 

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