Gerard Lovius dorme à noite no chão de uma sala de aula vazia, ouvindo o tiroteio. Ele e seus vizinhos, traumatizados, começaram a morar ali um mês atrás, depois que bandidos invadiram sua casa, fazendo sua mulher e os três filhos correrem pelas ruas e deixando-o sem nada: dinheiro, bens, nem sequer um celular.

No último dia 20, Lovius estava de volta a seu emprego de gari, se arrumando antes da cerimônia de homenagem ao presidente assassinado do Haiti no Champs de Mars, a praça principal da capital Porto Príncipe. O presidente Jovenel Moïse logo seria enterrado, e os membros de seu governo que disputavam a sucessão tinham chegado a uma trégua, prometendo liderar o país novamente.

Mas havia pouca paz na vida de Lovius. “Só temos esperança em Deus”, disse ele, empurrando uma carriola de lixo pela rua.

Os líderes do Haiti chamaram a trégua política de um novo capítulo, uma virada de página histórica, que, nas palavras do primeiro-ministro interino, Ariel Henry, mostra que “realmente podemos trabalhar juntos, mesmo sendo diferentes, mesmo tendo visões de mundo diferentes”.

Mas para muitos haitianos isso não parece uma mudança. A lista dos ministros do novo governo tem vários nomes conhecidos do partido de Moïse, incluindo o novo primeiro-ministro e Claude Joseph, ex-premiê que disputava com Henry o cargo máximo, mas agora assume como chefe das Relações Exteriores.

“Isto é uma provocação”, disse Pierre Espérance, diretor-executivo da Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos do Haiti, sobre o controle do partido no novo governo. “Significa que a crise vai continuar, a insegurança vai continuar e os bandos criminosos vão continuar.”

Ele afirmou que Moïse foi uma vítima de seu próprio governo, um líder que “morreu por causa da insegurança que seu partido criou”. Dois anos atrás, a violência e manifestações furiosas condenando a corrupção e exigindo a demissão do presidente paralisaram o país —deixando doentes sem hospitais, crianças sem escolas, trabalhadores longe dos poucos empregos, e a população no escuro, onde a eletricidade deixou de chegar.

As gangues ficaram mais ousadas desde então, controlando grandes partes da capital, atacando à vontade, sequestrando crianças a caminho da escola e pastores no meio de serviços religiosos.

“O país vai continuar na mesma situação, a menos que eles juntem suas cabeças”, disse Rosemane Jean Louis, pouco antes do início da homenagem e da posse do novo governo. “Não temos segurança. Estamos famintos, estamos na miséria.”

Jean Louis, 61, contou como ela casualmente se despediu de seu filho, de 24 anos, no ano passado, sem saber que seria a última vez. Com um sorriso, ele pegou um doce dentre as guloseimas que ela vendia diante de sua casa e seguiu seu caminho para encontrar um amigo. Percorreu um quarteirão, disse, antes de ser morto a tiros por membros de bandos em frente a uma igreja.

“Eu nem encontrei seu corpo”, disse. “Eles o levaram.”

Crime, sequestros, gangues, segurança: as palavras circulavam entre os haitianos em toda a capital. Enquanto adversários políticos faziam reivindicações para substituir Moïse, os moradores continuavam nas ruas protestando, por acreditarem que seus novos líderes, não importa quem sejam, não se importarão com eles.

A homenagem a Moïse aconteceu no jardim do Museu do Panteão Nacional Haitiano, onde a âncora do navio de Cristóvão Colombo, o Santa Maria, é exibida ao lado das correntes de antigos africanos escravizados.

Os convidados entraram lentamente, incluindo os dois que lutavam para suceder o presidente: Ariel Henry, neurocirurgião nomeado primeiro-ministro pouco antes da morte de Moïse, e Claude Joseph, o premiê interino que estava sendo substituído naquela semana, mas assumiu o controle do governo e impôs um estado de sítio.

Elogios a Moïse, cujo regime “cada vez mais autoritário” tinha alarmado muitos no Haiti e fora dele, o retrataram como um guerreiro pela justiça social que combateu os oligarcas do país, um cruzado cuja reputação foi assassinada antes dele. Diplomatas e ministros de seu governo se reuniram, junto de pelo menos uma autoridade do governo de Moïse que sofreu sanções dos Estados Unidos em conexão com um massacre em 2018.

“Você pode matar um revolucionário, mas não pode assassinar a revolução”, disse Joseph na cerimônia.

A disputa por poder entre Joseph e Henry tinha sido oficialmente acertada. Joseph disse na segunda-feira que concordou em renunciar e servir como ministro das Relações Exteriores e Religião, enquanto Henry se tornaria o primeiro-ministro, abrindo caminho para futuras eleições. Os dois ficaram lado a lado no início do memorial, cercados por membros do gabinete de Moïse.

Logo depois da cerimônia, o novo governo foi instalado sob um toldo diante do gabinete do primeiro-ministro. Joseph disse que estava entregando o bastão a Henry, que falou extensamente sobre os terrores que tomaram conta da nação, as pessoas que foram mortas e roubadas, as residências e empresas saqueadas e queimadas. Ele prometeu restaurar a estabilidade e preparar o país para eleições. Os dois se abraçaram brevemente.

A demonstração de união veio depois de uma acirrada disputa pelo poder. Legisladores e defensores da democracia haviam condenado o rápido avanço de Joseph e a imposição de um estado de sítio logo depois do assassinato, que alguns compararam a um golpe.

O presidente do Senado, Joseph Lambert, disse que ele seria empossado como novo líder do Haiti, mas subitamente adiou a medida, argumentando que autoridades americanas, que exerceram enorme influência sobre a política haitiana desde que invadiram o país mais de cem anos atrás, tinham pedido que ele recuasse.

Henry também tinha tentado impor sua autoridade uma semana antes, com pouco sucesso. Ele emitiu um comunicado de imprensa prometendo revelar seu novo gabinete no Karibe Hotel, um símbolo da elite, rodeado de palmeiras, que já foi um ponto preferido para anúncios políticos.

Mas justamente quando a entrevista coletiva deveria começar, na semana passada, o diretor do hotel fechou as pesadas portas metálicas do edifício, impedindo a entrada de jornalistas. Ele não havia sido informado da entrevista com antecedência, segundo disse, e não queria ser visto apoiando uma ou outra facção política. “Vocês sabem como as coisas são delicadas aqui”, explicou o diretor, Patrice Jacquet. “Preciso tomar medidas para proteger o hotel.”

Para muitos haitianos, a manobra política foi exatamente isso —um jogo de poder de membros da elite e do partido governante que lhes prometia pouco alívio. Alguns lembraram do período com carinho e lamentaram a perda de um político que se retratava como um inimigo dos interesses escusos do país.

Em um muro a algumas quadras da casa do ex-presidente, um grupo de artistas terminava um mural sobre Moïse na tarde de segunda. “Ele é o único presidente que se importou”, disse John Alfrena, 42, admirando o trabalho feito por seus amigos, enquanto especulava se Moïse foi morto por enfrentar os oligarcas do país, o pequeno grupo de famílias que controlam grande parte da economia haitiana.

Agora ele esperava que a mulher do presidente, Martine Moïse, continuasse o seu legado político. “Vamos lutar para que ela seja candidata em 2022”, disse ele.

Martine Moïse surpreendeu o país ao voltar no domingo de Miami, onde foi tratada dos ferimentos que sofreu durante o ataque a seu marido. Ela saiu do avião usando uma tipoia no braço direito enfaixado e um colete à prova de balas. Desde então, permaneceu geralmente fora de vista, mas uma mensagem dolorosa foi publicada em sua conta no Twitter três dias depois do assassinato, lamentando a morte de Moïse e encorajando o país a seguir no caminho dele.

“Vinte e cinco anos vivendo juntos. Em apenas uma noite, os mercenários o arrancaram de mim”, dizia a gravação. “As lágrimas nunca secarão nos meus olhos. Meu coração vai sangrar para sempre.” (Folha de S.Paulo)

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