Disse-me o doutor Josué Cláudio de Souza Filho que meus textos têm uma pitada de mel quando o assunto são os netos. Já infenso ao defeito juvenil da vaidade, tomei o que me pareceu um elogio como pura bondade daquele ilustre homem público, comunicador de mão cheia e hoje entregue ao afã de conferir e corrigir contas e tramoias que se urdem por trás das burras do erário. Afinal, apenas alinhavo palavras para expressar o que sinto, tendo o cuidado único de evitar, tanto quanto possível, qualquer agressão ao vernáculo que nenhuma culpa tem de ser manejado, às vezes, de forma estropiada e ofensiva. Que o diga o ministro da Educação.

Mas a verdade é que me ficou na cabeça a certeza de que essas criaturinhas que me chamam de vovô têm um poder e um fascínio que beira a magia. Dos oito que tenho, três já são adultos, dois enfrentam a chatice e as incertezas da adolescência e as três últimas, temporãs, são as responsáveis por eu saber de cor os nomes de todos os integrantes da patrulha canina, da mesma forma como sou capaz de cantar a música com que a fada, empunhando a vara de condão, vai transformando o jerimum na carruagem que transporta a Cinderela ao baile.

Permitam-me contar uma das últimas que me aprontaram. Estava eu sentado na varanda, pitando um delicioso cigarro (o antitabagismo me convenceu a não o fazer no interior da casa), ritual obrigatório após um gole de café ou de todinho (ou de uísque). Chegam Ayla e Helena, despóticas e absolutas com toda a autoridade que lhes conferem os seus seis anos de idade. Num tom muito grave, indaga a primeira: “Vovô, por que é que tu fumas?” Professoral, a pariceira dela dá a pronta resposta: “É porque, Ayla, se ele parar de fumar, ele morre mais depressa e vira caveira”. Findo esse edificante diálogo, retornam as duas para a “cabana” armada no meu quarto, com lençóis e caixas. Ocorre que o cigarro acabou. Joguei bagana e cinzas no lixo e voltei para me deitar, mesmo entre cabana e bonecas. Quando me viu, Ayla, que por certo fixou bem a explicação dada pela prima, foi enfática: “Vovô, por que tu paraste de fumar? Eu não quero “tu morre”, não”. Estava assim instituída a figura do fumante contínuo como forma de tentar evitar, ou pelo menos adiar, o inevitável. Senti-me fazendo inveja ao maestro Paganini, que se foi sem conseguir realizar o sonho do moto perpétuo.

A caçula é a Catarina. Tem três anos. É morena, bonita, sapeca e manhosa. Desde muito cedo, passou a me ouvir cantar uma musiquinha chata e repetitiva: “Catarina tinha uma flauta; a flauta era da Catarina. Sua mãe sempre dizia toca flauta, Catarina… Catarina tinha uma flauta”. Indagada sobre o que é que a Catarina tinha, ela sempre respondeu prontamente: “Uma falda”. Acontece que, recentemente, a pequenina aprendeu a controlar o intestino e a bexiga. A consequência foi que, quando lhe foi feita novamente a pergunta, ela não deixou por menos: “Vovô, agora eu não tenho mais “falda”; eu tenho calcinha”. Muito bonito para a minha cara. Acho que dá para imaginar como, aos olhos e ouvidos de um avô babão, o episódio é mais delicioso e incisivo do que qualquer cena shakespeariana.

O problema sério mesmo é a informática. É só me ver, a Helena vai metendo a mão no meu bolso, à cata do telefone celular, que ela manuseia e controla com a habilidade de um profissional. O Rei Leão passa, então, a ocupar a tela, enquanto a Catarina me puxa pela manga e insiste: “Vovô, eu quero o teu “tábete”. Que coisa! É preciso um esforço ingente para afastar as criaturinhas desse universo de algoritmos, sob pena de vê-las crescer sem nenhuma possibilidade de compreender o mundo. Não quero que nenhum neto meu vá engrossar as fileiras de mentecaptos do ENEM.

Os mais velhos já se livraram desse tormento. Bruninha vai iniciar a frequência à quarta série do curso de medicina. Caquinho segue os passos do pai e do avô, frequentando a faculdade de direito. Fábio Junior, o Campeão, está as voltas com o curso de relações internacionais, em São Paulo. Os da geração mediana, Laurinho e Luciana, estão tirando de letra o que, na minha longínqua época, era o curso colegial.

Restam as três pimpolhas. É uma pena que, daqui a pouco, já não estarão nas cabanas nem com as bonecas. Já não lhes cantarei “se esta rua, se esta rua fosse minha”. Ficarei só na saudade, apenas recordando o sabor do mel com que o doutor Josué Filho tão gentilmente temperou minhas lembranças. De fato, são doces lembranças.

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