Minha neta caçula, a Catarina Bianca, autodenominada “Cinderela”, tem quatro anos, é morena e é linda (juro que não é corujismo). Não tenho podido abraçá-la nem beijá-la porque, como dito em texto anterior, esse tal de covid 19, além de mortal, é de uma chatice capaz de entediar quem lê diário oficial ouvindo a Voz do Brasil. Mas tenho sabido do que ela anda aprontando. Contaram-me seus pais que, na semana passada, ela se saiu com esta: “Eu fiz um xixi porque tomei um copo de suco; e fiz dois “cocôres” porque comi dois pedaços de bolo”. Revelando essa aptidão precoce para a matemática, bem que a pequena poderia ser lembrada para o Ministério da Saúde, onde seria de inestimável valor para colocar em ordem as estatísticas sobre a pandemia.

Ou – quem sabe? – para o Ministério da Educação, agora que conseguimos nos ver livre do Weintraub. Como ela ainda não sabe escrever, o governo não correria o risco de ver um ministro grafando “impreCionante”. E, de sobra, não teria o dissabor de ouvir os membros da Corte Suprema serem chamados de “vagabundos”, de par com o desejo de colocá-los na cadeia. De onde terá surgido essa figura folclórica, agora afixada no Banco Mundial? De uma escola com certeza não saiu, porque se tivesse frequentado alguma, mesmo que no nível fundamental, haveria de ter conhecimentos básicos de seu próprio idioma. Também acredito que não tenha vindo de um reformatório, pois, fosse esse o caso, portaria alguma noção de respeito à autoridade. Outra vantagem para a Catarina: no seu currículo não constaria o diploma de doutora do ABC porque ela ainda o recebeu.

Mas acho que a “Cinderela” também poderia fazer bonito na Secretaria de Cultura, aquela mesma por onde teve passagem meteórica a Regina Duarte, conseguindo o fenômeno de não fazer absolutamente nada. Catarina Bianca não seria capaz de tratar a cultura nacional como lixo. Se a sua pueril ingenuidade não lhe permitisse a exata compreensão da problemática, também não a levaria à inércia nem ao desrespeito por valores essenciais da nossa manifestação artística. O cinema seria priorizado, pelo menos para a produção de desenhos animados, já que ela é fã incondicional do gênero. Por incrível que pareça, isso seria um grande avanço, se tivermos em conta a postura do atual governo em tudo o que diz respeito ao setor.

Tudo elucubrações tolas de um avô apaixonado. Sendo toda feita de e exalando amor, minha netinha não encontraria acomodações adequadas em um governo forjado no atraso, cultivador do ódio e incentivador da violência. Não haveria lugar para a sua meiguice entre gente capaz de imaginar que a intervenção militar e a ressurreição do AI-5 seriam boas para o país.

Aliás, eu fico me perguntando: quem assim “pensa” quer que os militares intervenham em quê? Em 1964 eles depuseram o Presidente, ao argumento de que Jango favorecia o avanço da esquerda. Como o “ouro de Moscou” e o fantasma do comunismo os assombravam, deliberaram rasgar a Constituição e passaram vinte e um anos governando num arremedo ridículo de democracia, com um parlamento amordaçado e um judiciário peado. Mas, e agora? Interviriam em nome de qual bandeira? Já no Planalto se encontra um dos seus. Não dos melhores, é verdade, umavez que sua passagem pelas Forças Armadas não permite escrever um catálogo de honradez. Seria, então, para fechar o Congresso e o judiciário? Mas isso tem um nome mais do que manjado: ditadura.

De outra face, quando vejo um mentecapto portando um cartaz que clama pela reedição do AI-5, só a duas conclusões posso chegar: não entende nada de História ou é um caso de irrecuperável insanidade mental. Ou as duas coisas juntas, o que é mais provável. Será que essa pessoa tem uma ideia, por mais diáfana que seja, do que foi aquele instrumento de terror? Não pode ter, pois, do contrário, nem de brincadeira poderia desejar tamanha estupidez.

É, definitivamente Catarina Bianca terá que permanecer fora do governo e crescer linda e cheia de ternura para ajudar na reconstrução de seu país. Sua geração há de ver um outro dia renascer “a esbanjar poesia”. E ela, então, lembrará que, se tivesse consciência de quantas monstruosidades estamos sendo obrigados a engolir, o número de “cocôres” tenderia ao infinito.

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