Nesse tempo de pandemia já vi de tudo. Desde opiniões e teses muito bem elaboradas a declarações sem fundamento e sem ligação alguma com a realidade ou com o bom senso. Aqui no Brasil, boa parte delas, movidas por preferências políticas. Infelizmente, ainda reverenciamos nossas autoridades como se fossem celebridades. O que elas disserem está dito. Colocamos figuras políticas acima dos interesses nacionais, como se tudo que falassem ou fizessem fosse irretocável, perfeito e acabado. Algo como um semideus (ou como um deus?). Outras vezes, demonizamos opiniões alheias, divorciadas de nossas próprias preferências políticas, como se elas nunca acertassem ou acrescentassem algo de bom.

A prudência e o bom senso nos aconselham a evitarmos qualquer extremo. O meio-termo é sempre muito bem-vindo. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O ponto médio é preferível a qualquer um deles.

Uma das declarações mais comuns refere-se à origem do novo coronavírus. No Brasil e na comunidade internacional correu a notícia de que ele teria sido fabricado em laboratórios chineses e que a China seria, portanto, a grande vilã da pandemia mundial.

É bem verdade que em muitos recantos do território chinês existem verdadeiras caixas-pretas. Pouco se sabe ou superficialmente as conhecemos. Principalmente quando envolvem relações políticas, dada à forma de governo por lá adotada. Mas o cenário sombrio não pode funcionar como um cheque em branco. Algo como um dogma diante do qual só teríamos duas opções: acreditar ou desacreditar cegamente. Sem nenhuma conjectura cognitiva.

Em terrenos tão incertos, a razão e o conhecimento científico sempre serão bons conselheiros.

Sobre a suposta origem laboratorial do novo coronavírus em terras chinesas, há algumas questões que precisam ser levadas em consideração.

A primeira delas, diz respeito à estrutura genética do próprio vírus. A maioria dos cientistas que estudaram sua estrutura afirmam que ele não foi geneticamente modificado. Segundo matéria publicada no Sciensealert (www.sciencealert.com) em 17/07/2020 “A composição genética ou “genoma” do SARS-CoV-2 foi sequenciada e compartilhada publicamente milhares de vezes por cientistas em todo o mundo. Se o vírus tivesse sido geneticamente modificado em um laboratório, haveria sinais de manipulação nos dados do genoma”. Em outras palavras, estruturas genéticas manipuladas sempre deixam “cicatrizes”, como se fossem “pegadas na areia”.

O novo coronavírus faz parte de uma família de vírus. Todos os demais membros da família – inclusive o próprio – apresentam genomas com pontos semelhantes que indicam a evolução natural a partir de animais (morcegos, camundongos, animais domésticos).

Evidentemente que a comunidade científica internacional não é unânime em admitir considerações dessa natureza, mas a grande maioria as admite. Ademais, diante da obscuridade em torno do vírus, é natural que existam opiniões divergentes. O certo é que, afirmações no sentido de “decretar” a origem laboratorial do vírus terá que responder, ainda que minimamente,às considerações expendidas, inspiradas na estrutura genética do novo coronavírus. Do contrário, não passarão de suposições, sem base científica alguma, semelhantes às que admitem a existência de marcianos no planeta marte.

Não bastasse considerações no campo da biologia, as leis da economia também oferecem preciosos subsídios. Todos, na mesma direção. 

Se o vírus realmente foi fabricado pelos chineses então, pela primeira vez, desde quando inaugurou sua mais que exitosa reforma econômica em 1978, o grande dragão deu um tiro no próprio pé. A ideia pode ter sido a pior estratégia – economicamente falando – dos últimos 42 anos da China. Um erro primário. Elementar. Digno de um fracassado. Quiçá, a pior opção, quando comparada às estratégicas econômicas de seus principais concorrentes no mercado internacional (EUA, Japão, União Europeia).

A prevalecer a tese, a China foi duplamente ferida de morte.

Segundo dados do Fundo Monetário Internacional, toda a riqueza produzida pela China em 2019 correspondeu a 14,38 trilhões de dólares (ou, 77,22 trilhões de reais, ao câmbio atual). Em 2018, esse valor estava representado por 13,61 trilhões (ou, 73,08 trilhões de reais, também ao câmbio atual). A diferença de 0,77 trilhões de dólares que separam os dois anos equivale ao crescimento do PIB chinês em 2019 em relação a 2018.

De acordo, ainda, com o FMI, a previsão de crescimento do PIB chinês em 2020 será de apenas 1%, ou seja, 0,14 trilhões de dólares, se comparado ao PIB de 2019, ou seja, muito abaixo do crescimento experimentado em 2019 (em relação a 2018). Será o mais baixo crescimento da economia chinesa nos últimos 25 anos.

Já ouvi muita gente dizendo que o grande negócio da China foi lançar o vírus no mundo e depois faturar com a vacina que, supostamente, também já estaria pronta (já que o vírus fora fabricado por eles). Poucas vezes vi afirmações tão absurdas. Matematicamente  e economicamente falando afirmações dessa natureza não possuem o mínimo fundamento.

Basta fazermos as contas.

No mundo somos 7,5 bilhões de pessoas. Quanto custaria a dose de uma vacina contra a Covid-19? Jason Schwartz, professor assistente de políticas de saúde na Escola de Saúde Pública de Yale (EUA), afirma que muito provavelmente o preço não será o mesmo no mundo. Nos EUA poderá custar 200 dólares, mas nos 50 ou 60 países  de renda mais baixas no mundo poderá girar em torno de 3 ou 4 dólares. Segundo ele, o custo menor é explicado pela ajuda internacional promovida pelos países mais ricos.

Qualquer que seja o preço considerado – 3, 4 ou 200 dólares – o valor bruto faturado  com a venda da vacina aos 7,5 bilhões de almas oscilaria entre 22,5 bilhões de dólares (ao custo de 3 dólares) e 1,5 trilhões de dólares (ao custo de 200 dólares).

No tocante a este último cenário – o mais positivo deles – é preciso levar em consideração, entretanto, que muitos governos ao redor do mundo estão subsidiando as pesquisas, assumindo custos, a fim de obter a vacina e distribui-la gratuitamente entre seus residentes. Isso “puxará para baixo” o custo final de uma dose. Sendo assim, dificilmente a dose da vacina custará o equivalente a duas centenas de dólares aos 7,5 bilhões de humanos. 

Ademais, a China não é a única na corrida para fabricar uma vacina. Juntamente com as três vacinas chinesasque atualmente estão na fase mais avançada das pesquisas (fase III de quatro fases), há mais três concorrentes que também se encontram na mesma fase: uma inglesa, uma americana e outra alemã. Portanto, a fatídica ideia de vender vacinas para faturar com ela não passa de um grande engodo. Não haverá exclusividade chinesa e, ainda que houvesse, os valores faturados nem sequer chegariam perto dos prejuízos sofridos pela economia chinesa com a pandemia conjugados com as perdas que atingiram seus parceiros comerciais em todo o mundo.

Não bastasse isso, a pandemia apanhou em cheio todos os países que consomem produtos chineses ou vendem para a China. A pandemia deixou (e continua deixando) um rastro de desgraça por toda parte onde ela pisou. Há choro e ranger de dentes em todos os recantos do mundo.

Segundo o FMI, pela primeira vez, todas as regiões do globo estão em recessão.  A previsão para a Zona do Euro é uma queda de -10,2%, América Latina e Caribe de -9,4%, Oriente Médio e Ásia Central de -4,7% e África Subsaariana de -3,2%.   A China, que desde 1999 registra taxas de crescimento acima de 6%, crescerá apenas 1% em 2020. Entre as economias avançadas, apenas o Japão terá a menor queda: -5,8%. Os demais: -8% (EUA), -7,8% (Alemanha), -12,5% (França), -12,8% (Itália), Espanha (-12,8%), -10,2% (Reino Unido), -8,4% (Canadá). Entre as economias emergentes e em desenvolvimento, o cenário não muda muito: -4,5% (Índia), -6,6% (Rússia), -9,1% (Brasil), -10,1% (México), -6,8% (Arábia Saudita), -5,4% (Nigéria) e -8,0% (África do Sul). Na África Subsaariana – composta por 48 países – a renda per capita cairá 5,5% em 2020, apresentando níveis de 10 anos atrás. Ou seja, tudo o que foi construído na última década virará fumaça. Talvez, o nível de renda duramente construído nos últimos dez anos precisará outra de década (ou mais anos) para alcançar o patamar atual. Em síntese: um retrocesso brutal. 

Ou seja, o tal vírus chinês teria a “virtude” de matar todas as suas galinhas de ovos de ouro…

Em síntese, não apenas a economia chinesa amargou grandes prejuízos com a pandemia, mas também todos os países que fornecem produtos para ela e/ou compram seus  produtos.

Em outras palavras: seria razoável admitirmos a atitude de um estabelecimento comercial que decidisse acabar, de uma hora para a outra, com todos aqueles que compram seus  próprios produtos? Isso não representaria sua própria ruína? Seria lógica uma atitude assim? Sinceramente, é o tipo da equação que não dá para fechar. As variáveis não batem e a solução muito provavelmente  nunca será alcançada.

Alipio Reis Firmo Filho

Conselheiro Substituto – TCE/AM e Doutorando em Gestão

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