O tempo, esse implacável reformador, se incumbiu de colocar um fim em algumas práticas que eram comuns na Manaus de sessenta anos atrás. Por exemplo: quem é, hoje, que ouve falar em serenata? Fazer uma, então, é algo impensável, restando aos saudosistas assistir ao Carrossel da Saudade, programa em que a TV Cultura abre espaço para as melodias d’antanho, com violonistas da qualidade de Rinaldo Buzaglo e cantoras com o talento de Kátia Maria. Mas não há que cogitar de ir para a rua e fazer a serenata como ela foi moldada e com os objetivos a que se propunha.

De preferência (mas não obrigatoriamente) nas noites em que o luar era esplendoroso, nas ruas desertas da pequena província, os rapazes cumpriam trajetos pré-estabelecidos, em que os pontos de referência eram as casas das moças que, bonitas ou não, alimentavam os sonhos e os desejos dos caminhantes. Porque era a pé a peregrinação, com os acessórios imprescindíveis do violão, da garrafa de cachaça ou de rum e de uma absoluta despreocupação com violência ou assalto. Chegando ao destino, o ritual era de uma simplicidade comovente: o violeiro tangia seu instrumento e, como numa orquestra, o cantor entrava no momento preciso, música e voz ecoando pelo silêncio só perturbado aqui e ali pelo impertinente protesto de algum cachorro de gosto musical duvidoso. Não necessariamente era o próprio apaixonado que cantava. Havia o que poderíamos chamar de seresteiros “profissionais”, como Simas Vieira e Bráulio Arruda, sendo comum convocar qualquer deles para melhor transmitir o amor e a ternura das melodias.

Nem tão simples era o acolhimento dos sonhadores. Se a moça estava avisada e tinha dado seu consentimento, era até possível que se abrisse uma janela para o estabelecimento de um diálogo mais direto, havendo registro de casos (raros, é verdade) em que havia convite para a entrada na residência. Mas nem tudo eram flores. Pais irascíveis e intolerantes, não se pejavam de ameaçar os jovens com armas de fogo ou mães mal-amadas armazenavam urina em penicos especiais para lança-la sobre a trupe. Riscos que valia a pena correr porque já Fernando Pessoa ensinava que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. O certo é que as serenatas se foram e ninguém mais consegue ouvir na noite de Manaus: “Noite alta, céu risonho/A quietude é quase um sonho”.

Também sumiu definitivamente o “serrar velha”. Já estaera prática que nada continha de romantismo ou ternura. Antes, diria eu, estava forjada na mais cruel das irreverências, revelando faceta em que se misturavam o sinistro e o macabro. Para tentar compreendê-la, é preciso lembrar como era a semana santa naqueles tempos. O predomínio da igreja católica era incontestável. Como já disse alhures, na rua da minha infância, a Leonardo Malcher, às margens do igarapé de São Raimundo, havia quase como uma superposição de épocas, sendo que o calendário registrava o século vinte, mas a religiosidade imperante remetia para costumes e hábitos do medievo. A partir da quinta-feira santa até o sábado de aleluia, havia mudança significativa na rotina familiar. A mesa de refeições era desguarnecida de toalha e, especificamente na sexta-feira, a coisa chegava ao ápice, com, por exemplo, a proibição severa de produção de qualquer barulho.

As emissoras de rádio só transmitiam música sacra, nas igrejas os sinos não badalavam desde as quinze horas e até os cinemas só ofereciam um filme (que, na verdade, era umdesenho animado) intitulado “Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”. De notar que as mulheres, quando iam assistir a uma sessão, se paramentavam como para a missa, usando véu e portando um terço.

Pois muito que bem. Num ambiente soturno como o descrito, nas noites de sexta-feira santa, com luar ou não, havia também grupos de jovens que deliberavam fazer uma espécie de serenata ao contrário. Aqui, o alvo já não eram as moças. As vítimas eram as velhas, as muito velhas mesmo. Postavam-se à porta da infeliz senhora escolhida para a pândega. Faziam soar a matraca, que ecoava noite afora como a mais sinistra das lamúrias, e entoavam uma litania cujo conteúdo ficava a gosto do freguês, desde que fosse agouro de morte próxima. Lembro-me de uma: “Ai, dona Mundoca, vai entregar sua alma a Deus e o corpo à cova fria”. Era então que o serrote passava a cortar a madeira, completando a encenação macabra. Que coisa pavorosa! Como as anciãs geralmente eram desprotegidas, nem o balde de mijo ameaçava os trovadores da desgraça.

Não há mais seresta nem serra velha. Tudo foi engolfado pelo tempo. Aos que insistem em viver, como eu, resta a lembrança.

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