Não adiantou eu me esconder. Cinco meses dentro de casa, aumentando a conta de água por conta da lavagem das mãos, usando álcool e máscara, nada disso adiantou. O cretino do vírus me descobriu e, sem a menor cerimônia, entrou sem ser convidado, abancou-se e, se dependesse dele, não sairia tão cedo. O bichinho é muito chato. Quando você pensa que se viu livre da febre, ele vem com uma sessão de calafrio. Passou a dor de cabeça; não fique tão alegre: logo, logo, você vai estar com dores musculares. Isso sem falar na moleza geral e no sacrifício que é engolir uma comida, sem lhe sentir gosto ou cheiro.

Se você acha que é demais, prepare-se então para verdadeiramente ter pena de mim. Imagine tudo isso que descrevi e acrescente a obrigação de parar de fumar abruptamente, interrompendo um vício de mais de sessenta anos! Posso lhes dizer de cátedra: é desumano. A angústia sufoca e tira do sério. Mil vezes pior do que o próprio vírus. Mas foi o jeito. Afinal de contas, o pulmão é o habitat do infeliz e é preciso não facilitar sua atuação, uma vez que ele já é confiado ao extremo.

Ninguém me venha dizer que conseguiu ler alguma coisa durante a infecção. Impossível. A falta de ânimo é tão grande que até ouvir boa música exige um esforço sobre-humano. A lassidão é geral. O vírus parece se deleitar com a devastação que provoca de tal maneira que a pessoa não consegue acreditar que um dia foi normal.

Eu, agora mesmo, no momento em que estou escrevendo, ainda me sinto como um estranho. As coisas ainda não entraram nos seus devidos eixos. Acho que é natural. A violência do ataque torna mais difícil a expulsão do invasor, principalmente um desse tipo, que parece não conhecer limites.

Como ficamos doentes no mesmo dia, minha mulher e eu, com os mesmos sintomas e achaques, éramos o exemplo ainda vivo da velhice alquebrada. Se houvesse eleição para escolher o “casal corona”, acredito que teríamos grandes chances de ficar com o título. Está evidente que toda a rotina foi para o espaço. Ainda mais porque nosso filho Alfredo, que mora na casa ao lado, também caiu dois dias antes de nós, de tal forma que o nosso ambiente não podia ter nada de saudável. E não tinha mesmo.

As regras de afastamento dos netos ficaram ainda mais severas. Impossível qualquer aproximação. Isso já não era bom estando a gente com saúde, dá para imaginar o que acontece com a pessoa debilitada, sentindo-se a criatura mais inútil da face da Terra e a depender dos outros para tudo.

Nossa filha Lucíola assumiu a enfermagem. Um profissional desse ramo, por mais qualificado que seja, não conseguiria excedê-la em cuidados, dedicação e preocupação. Claro que instávamos para que ela não ficasse aqui, convivendo com a própria infecção. Nada adiantou. Dormia na sala, velando por nós. Controlava horário de remédios e não conseguia esquecer o oxímetro, aparelho ao qual apresentado na doença e cuja utilidade confesso não saber explicar direito. Sei que ele é colocado no dedo indicador de qualquer das mãos e deve apresentar dois resultados, um dos quais, se for abaixo de noventa, o infeliz pode preparar o velório.

Doce Lucíola. Você foi um bálsamo, minha filha. Seus cuidados foram mais eficazes que qualquer um dos remédios. Em você víamos todos os seus irmãos, que não paravam de chamar pelo telefone. Vocês amenizaram as agruras da estrada, jogando um tapete de carinho e amor sobre as pedras do pavimento. Estamos aqui. Que os amigos recebam meu fraternal abraço de retorno ao mundo dos vivos e os agradecimentos pelas sinceras preocupações. Confesso que não vejo a hora em que vou poder dar uma golada no meu uísque. Já é abstinência demais.

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