No carnaval de 1985, veio a lume um samba de enredo, com uma letra que assim começava: “Me dá, me dá, me dá o que é meu/Foram vinte anos que alguém comeu”. Era clara a referência à ditadura militar, cuja comilança, na verdade, durou vinte e um anos. Como eu, à época, tinha quarenta e dois de idade, significa dizer que metade da minha vida se passara sob o obscurantismo fascista, com falta de oxigênio cívico e no reinado do mais puro e deslavado arbítrio.

Sobrevivi e cheguei aos setenta e sete que hoje carrego nos costados. A preparação para a partida entra, é claro, em linha de conta, porque, se é certo que a morte não escolhe idade, é também certíssimo que, para os velhos, a proximidade é muito maior, na medida em que não existe rota de fuga. É só esperar. É o normal.

O que nunca me foi dado imaginar foi que, nesta altura da vida, viesse a surgir uma nova ditadura, tão cruel como a que a antecedeu e claramente disposta a encurtar o tempo que resta, já de si limitado. A “coviditadura” me impôs o cumprimento de prisão domiciliar e é tão consciente de seu poder absoluto que nem se dá ao trabalho de exigir o uso de tornozeleira eletrônica. É desnecessário: não sair de casa se tornou requisito de sobrevivência. É como se o ditador divulgasse sadicamente seu slogan assim concebido: “Venha para a rua e morra”. Na dúvida, fico com o menos pior.

E assim é que, trinta e cinco anos depois de o sambista cobrar o tempo que lhe foi furtado, vejo-me eu na contingência de não saber para quem mandar a conta pelo tempo que me está sendo roubado na velhice. Acho que vou imitar Lupicínio Rodrigues e queixar-me às rosas. Elas não falam, é certo, mas talvez tenham a capacidade de compreender e, com seu perfume, amenizar a angústia do isolamento.

Assim ilhado e na tentativa de me convencer de que há esperança, pus-me, outro dia, a fazer algumas comparações. Fiquei estarrecido com o que pude constatar. Há pessoas, muitas pessoas, em situações de muito maior gravidade e entregues ao mais completo desamparo. Por exemplo: os que se encontram cumprindo pena privativa de liberdade, nas prisões brasileiras. Meu filho Luís Carlos, que é juiz e cientista do direito, participou, na semana passada, de uma teleconferência promovida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ali, expôs o quadro de flagelo que se desenvolve nesses cárceres. Desprovidos dos mínimos requisitos impostos pela própria lei, eles não chegam a se alçar nem à condição de depósitos de pessoas. Estão mais para vala comum de “cadáveres vivos”. Os que nela são jogados hão de ter, por certo, a pandemia como a menor de suas preocupações.

Luís Carlos estava na companhia de juristas do mais alto quilate, provenientes de diversos países da América Latina. Todos foram unânimes em reconhecer que, em suas terras, o cenário não é diferente, de tal forma que a pandemia adquire muito maior ferocidade quando encarada sob esse ângulo.

É tão grave a coisa que dá até para sentir uma certa vergonha do “privilégio” de que estou desfrutando. Acontece que, para quem se pretende normal, a desgraça alheia não pode servir de consolo. Deve apenas inspirar um mínimo de solidariedade com aqueles mais desamparados.

E assim sigo eu passando o tempo na minha cafua. Meu compadre Jacinto Botinelly costumava adaptar para si mesmo um poema de Omar Khayam e dizia: “Bebe vinho, Jacinto; tens mil séculos para dormir”. Era um chamamento ao desfrute da vida, antes da eternidade do nada. Mas está difícil até fazer isso. O vinho não pode ser plenamente degustado sem a presença dos que amamos. Falta-lhe o buquê e acaba sabendo mais a vinagre.

Felizmente, de vez em quando surgem diversões inesperadas. Foi o caso da reunião ministerial divulgada em vídeo. Que espetáculo! Obsceno, é verdade, mas, ainda assim, tragicômico. O gerente de um circo dos horrores não hesitaria em comprar os direitos autorais daquela pantomima. Parecia uma convenção promovida pelo cinismo e pela irresponsabilidade em conjunto. E foi aí que me pus a pensar: definitivamente estão de sacanagem comigo. Se não bastasse a pandemia, agora estou vivendo novamente sob o governo dos fantasmas que se levantaram do túmulo da ditadura. O jeito é pedir de novo: “me dá, me dá, me dá o que é meu”.

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