Felix Valois

No tempo em que o ensino público no Brasil era levado a sério, estudava no Colégio Estadual do Amazonas uma figura por todos os aspectos simpática. Era o João, conhecido como Joãozinho, que sabia dosar em quantidades proporcionais companheirismo e alegria. Com seus dezoito anos, transbordava cordialidade e era indispensável nas rodas de piadas, aglomeradas no Café do Pina ou em torno da carroça do Mudinho que nos vendia um cachorro quente bem original, já que não tinha salsicha; seu recheio era um picadinho produzido segundo receita até hoje desconhecida da culinária tradicional. E, o que não mudou em nada, sem qualquer supervisão de alguma autoridade sanitária.

O chamado segundo grau ou colegial era dividido em dois cursos: o clássico e o científico, destinando-se o primeiro aos mais inclinados para as ciências humanas, e o segundo, para os que tinham maior afinidade com as chamadas ciências exatas.

Já se vê que os alunos do clássico tinham que enfrentar Ovídio e Cícero, mas, em compensação, suas aulas de matemática e física, por exemplo, eram reduzidas. E tinham que ser mesmo porque eu só conheci uma pessoa que, frequentando o clássico, conseguia se safar dos, apesar de toda a redução, complicadíssimos problemas de matemática. Era o Nelson Dantas, o Cabeção, tanto assim que se transferiu para o científico e acabou engenheiro. Dos melhores, diga-se de passagem, tanto assim que já prestou serviços à NASA, ajudando na produção de foguetes e outras geringonças intergalácticas.

No último ano do clássico, o terceiro, Joãozinho estava bem em latim, literatura nacional e estrangeira, francês, mas não conseguia exorcizar o fantasma da reprovação em matemática, cujo professor era nada mais, nada menos, que o famoso Otávio Mourão, conhecido como Mourão Preto, em contraponto com o Mourão Branco, personalizado pelo professor Fueth Paulo Mourão. Cito apenas duas figuras da constelação de mestres que compunham a congregação do centenário Colégio.

Ambos estão mortos e ambos deixaram saudades. Lembro-me, inclusive, de que, tomando cerveja com o professor Otávio Mourão, ali pelas bandas de Aparecida, quando ele já era reitor da Universidade do Amazonas, disse-lhe que ele tinha sido o único professor a me flagrar colando. Foi numa prova de física (que ele também ensinava) e é claro que o mestre não se recordava do incidente, enquanto eu jamais o esqueci, tamanha foi a vergonha por que passei. Foi no segundo ano e eu era aluno do clássico, não me sendo possível, naquela época nem hoje, compreender perfeitamente os intrincados meandros das fórmulas que fizeram a glória de Einstein.

Naquele tempo, no final do ano letivo, havia prova oral. Era quase uma solenidade. Formava-se uma banca de três professores, entre eles necessariamente o titular da cadeira e todos, se assim o quisessem, podiam formular questões ao examinando. Pois muito que bem. Estava reunida a banca para o exame oral de matemática dos alunos do terceiro ano do curso clássico. Estava-se a um passo da formatura, o que significava a liberação para a tentativa de ingresso na Universidade, para o que ainda não haviam inventado esse ridículo sistema de cotas, o qual parte do pressuposto de que o conhecimento humano há de ser compartimentado de acordo com as raças e a capacidade financeira.

Joãozinho havia passado a noite em claro, estudando, mas não escondia o nervosismo, enquanto aguardava a inquirição (que era pública) por parte do temível professor Mourão Preto. Na sua cabeça voluteavam equações, logaritmos, integrais, derivadas e todos os mais terrores da ciência dos números.

— João de ……, chamou o presidente da banca.

Joãozinho levanta da carteira, dá uma última olhada nas anotações muito bem feitas e segue a passos miúdos, com o aspecto do condenado que vislumbra a escada do cadafalso. Era a hora da verdade. Nosso herói senta à frente do “monstro”, cumprimenta com um tímido “boa noite” e fica à espera da execução em si mesma.

Eis senão quando a classe ouve, surpresa, a voz estentórea, que era reflexo da indiscutível autoridade do mestre e apenas camuflava um enorme coração:

— João, estás no último ano e eu não quero te reprovar. Dize aí o que tu sabes de matemática para eu poder fazer as perguntas.

A réplica não se fez esperar e veio sucinta e objetiva, com uma espontaneidade de causar inveja:

— Professor, na verdade, eu sei integrar, derivar e desfilar.

A gargalhada foi geral. Nem mesmo os professores conseguiram conter o riso. João foi dispensado, aprovado e cumprimentado por todos. Afinal de contas, nunca um exame de matemática teve conteúdo tão inusitado quanto aquele.

Não preciso dizer que Joãozinho era o que, então, se chamava de fi-fi.

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